Iracema, uma transa amazônica





















Em 1974, Jorge Bodansky, Orlando Senna e Wolf Gauer desenvolveram uma experiência radical de hibridização entre o registro ficcional e não-ficcional. A idéia surgiu quando Bodansky, que era fotógrafo da Realidade, a revista de reportagens especiais da editora Abril nos anos 60, esteve na rodovia Belém-Brasília. Ali, ele testemunhou a movimentação de caminhões, bem como as queimadas, o desmatamento, a miséria e a prostituição infantil.

Observando o cotidiano que se engendrava naquele ambiente, ele decidiu retratar a população local, com imagens do dia-a-dia, em paralelo com o caminho do motorista Tião Brasil Grande (Paulo César Peréio) e da jovem Iracema.

No contexto da ditadura do governo Médici (1969-74), a construção da BR-230 era um dos carros-chefe do desenvolvimentismo que a nação – “Brasil Grande” - elaborava de acordo com as diretrizes do chamado Milagre Econômico. Assim, o personagem do caminhoneiro Tião é perpassado de ironia a todo o momento. Ironia essa que custaria caro para o projeto. Produzido para uma televisão alemã, os militares utilizariam esse argumento para censurar Iracema que, como produção estrangeira, não representava o Brasil nem os brasileiros. O filme só foi liberado em 1981.

Com o compromisso social de fazer do cinema uma denúncia, revelação e interpretação das mazelas do país, Jorge Bodansky, Orlando Senna e Wolf Gauer expõem situações de violência, exploração e dominação de classe, em uma Amazônia nada familiar.

Se o filme contribui para complexificar a realidade e as informações que temos sobre o norte do país, é a Tião Brasil Grande que devemos essa provocação. Como espécie de anti-herói, o personagem de Pereio é um provocador que toma atitudes condenáveis pela insensibilidade de não enxergar a humanidade nos outros. Para ele, tudo se trata de “ser esperto” e “saber se virar” e é desse jeito que ele se transforma em imagem metafórica do Brasil, que expande suas fronteiras mas explora, degrada e humilha nesse meio tempo. Com Iracema, a realidade bate à porta. Nada de imagens agradáveis, bonitas e triunfalistas sobre a Amazônia. É hora de ver a poeira provocada pelos caminhões que embaçam a visão e poluem o ambiente com fumaça escura. É hora de ouvir a serra elétrica que corta as árvores sem lei, ordem ou consciência ambiental. É hora de ver a índia prostituta, pobre, desdentada e suja. É hora de ver.

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