Dia 6 - 09/01/08 - quarta

Depois da terrível viagem no trem, o nome pelo qual ele ficou famoso logo se explica: o trem não mata, mas quase. Exagero. Sofremos um choque, de certa maneira: as poltronas duras, as bagagens mal fixadas por sobre nossas cabecas, o frenético sacolejar, o ruído de ferros batendo, o cheiro de terra e suor e as infinitas paradas nas "estacões"

O incrível foi que, enquanto eu, brasileiro, achava tudo aquilo um absurdo, os bolivianos que percorrem o trajeto com mais frequência acham bem natural: a mãe arruma e estende os cobertores no chão e o filho de 12 anos, de pijamas, deita sobre as poltronas duplas. No banheiro, um aviso em cima da torneira alerta: "esta água nao é potável". No vaso sanitário, sem lixeira nem papel higiênico, o buraco central mostra os trilhos passando rápidos. Qualquer coisa que se faça ali vai direto para o chão de fora do trem.

Tudo isso na segunda classe. Na primeira, os bancos sao semi-reclináveis e há ar-condicionado. Na última, as poltronas sao mais próximas umas da outras e é possível ficar um passageiro de frente para o outro.

Mas em todos os vagões – com exceção da primeira classe, segundo me disseram, mas não pude confirmar – as mulheres e crianças – de 7, 8 anos – entram para vender comida. É sempre a mesma cantilena triste e monótona e repetitiva de quem trabalha muito e constantemente em um serviço que não tem hora de entrada nem de saída – até na madrugada as crianças, algunas acompanhadas das mães e outras sozinhas, vendem pastéis, frangos assados, carnes no espeto, água e limonada.

No meio da madrugada, uma senhora e dois filhos sentam-se próximos à minha poltrona. Não há poltronas vagas para eles. Ela fica no chão, onde acomoda a menina de 5 anos e o garoto de 10. Viajam dormindo ali mesmo. Para eles, nada de anormal.

Chegamos a Santa Cruz de la Sierra, por fim. O alívio da chegada dura até nao encontrarmos vagas em nenhum dos hotéis próximos à rodoviária. Hospedamo-nos um pouco mais longe, próximo da catedral e da alaldia.

Santa Cruz é uma cidade simpática. Descobri, ali, que as bolivianas podem ser muito bonitas, mas perdi a oportunidade de conversar com as primeiras que nos disseram ¡Hola! na praça. Demoramos demais.

Simpatia da cidade e também do taxista Vítor, que nos levou para uma volta nos "anillos" de Santa Cruz - planejada em cerca de 20 anéis que seguem de modo concêntrico. Com ele, conhecemos a periferia, tão pobre quanto em Porto Quijarro.
Vítor veio de Cochabamba e é defensor ferrenho do governo de Evo Morales. "Ele está mudando, pensando nos mais pobres e batendo na elite branca. Toda mudança provoca resistência. É um choque para os pobres. A grande questão é a distribuição de terra e os cambas são contra isso".
Pelo que ele explica, colha é quem vem da regão do altiplano. São, como ele, favoráveis à política de Evo. Camba é quem vem do oriente do país. São contra o pensamento e as atitudes do atual presidente.

Vítor nos falou sobre o mal de Soroche, problema sofrido por quem não está acostumado com a altitude das montanhas. "Vocês têm de tomar um remedinho chamado "soroche", um chá de coquita antes de subir e deixar três ou quatro folhas de coca no canto da boca".

Andamos mais de meia hora em seu táxi. O trânsito aqui é um caos a toda hora do dia ou da noite. Os carros, na maioria modelos já considerados antigos no Brasil (de vez em quando aparece um bólido tipo Mitsubishi), são muitos e o som da buzina supera todos os outros barulhos. É a lei da buzina e da desorganização. É preciso paciencia para que o pedestre possa atravessar qualquer rua movimentada.

Dia 5 – 08/01/08 – terça

Depois de 21 horas de viagem de Floripa para Campo Grande, vivemos ainda momentos de luxo na casa de nosso amigo Tonetti, com direito a comida boa e banho na capital do Mato Grosso do Sul.

Depois de um jogo de sinuca e cerveja, viajamos mais 12 horas de ônibus em direção à Corumbá.

Hoje, pela manhã, chegamos de táxi à fronteira, onde dois oficiais bolivianos fardados checaram nossos documentos e carimbaram os passaportes. No táxi que tomamos em seguida, com destino à cidade de Porto Quijarro, tivemos o primeiro contato com o novo país e sua população: uma paisagem de terra batida com casas muito simples e mendigos na rua.

Francis, o taxista, se exaltou quando tocamos no assunto “Evo Morales”. Ele não concorda com certas medidas do presidente, mas lhe agrada o fato de Evo representar uma mudança na sucessão de governantes brancos.

Em Porto Quijarro, buscando uma passagem para o chamado “trem da morte”, conhecemos Rojas, um senhor de 67 anos que nos pede para vigiar sua bagagem enquanto vai telefonar de seu celular Nokia. É um modelo antigo, daquele estilo vulgarmente conhecido com “tijolão”.
A chuva na cidade é intermitente. Há goteiras dentro do terminal e muita gente esperando para entrar no trem, que atrasa quase uma hora. Lá dentro, ao lado das poltronas duplas pouco confortáveis, está Enrique Roca Ayala, um pedreiro que trabalha no sistema de iluminacão de Porto Quijarro. Junto dele viaja Felipe de Lima, um garoto de seis anos que nasceu em Campo Grande. O pai de Felipe, junto de Enrique, vendia pamonhas nas estações de trem até que a bebida cortou a relacao dos dois. "Ele comecou a ter problemas com álcool", conta o pedeiro que também é pastor protestante.

Felipe pronto pra briga

O pequeno Felipe, um guri que não pára de brincar com um broche dos Guns`n Roses, está sob os cuidados de Enrique, que levará a crianca até o povoado de Fontana. Os olhos brilhantes e o sorriso do pequeno Felipe sao revigorantes e fazem a viagem ser mais suportável.

Eles deixaram o trem faz tempo. Nesse meio tempo, as paradas nas estações são entrecortadas pelos apitos das mulheres e criancas que vagueiam pelos corredores vendendo comidas e bebidas - limonadas em baldes para quem se dispuser a pagar um boliviano pelo copo. A propósito, um real brasileiro vale 3,50 bolivianos no mercado paralelo.
Agora, 21h, estamos longe do destino e de saco cheio com a viagem que, ainda que cansativa, ainda não nos mostrou razão para se chamar “da morte”. Ao menos não para nós.


Dentro do trem


...

Vendedora no trem: crianças trabalhadoras


0h47 – o trem anda e pára com uma frequência irritante. Parece quebrado. Os bolivianos que nos desculpem, mas não consigo deixar de pensar: como é que fui me meter nessa?
O "trem da morte"

Tonetti, eu, Celso, Gorges e Faraco: tereré no campo "mais grande" do Brasil

Dia 3 – 06/01/08 – domingo

Saímos por volta das 15h de Floripa em um ônibus executivo com destino a Campo Grande. No banco da frente, um guri que já fez a viagem para Machu Picchu conta algumas de suas experiências: a dor física provocada pelas altas altitudes (“dor de cabeça é o mínimo que você vai sentir, o pior é o ouvido quase estourando...”), a criminalidade, a pobreza e a precariedade da comida boliviana.

Ele me pareceu meio preconceituoso, sei lá. Acho que vê os outros com os próprios olhos em vez de tentar buscar um novo olhar, diferente do seu. De qualquer forma, seu relato me deixou com certo receio.

Em Floripa - e nos lugares pelos quais passamos como Joinville – a chuva era intermitente. Posso ser piegas, mas quem sabe nosso caminho está sendo lavado para que nossa experiência seja revitalizadora... Vai saber...














Visão da varanda do quarto da Bruna, irmã do Gorges

Dia 1 – 4/01/2008 – sexta

A idéia é percorrer parte do Brasil, atravesar a Bolivia e chegar a antiga cidade-fortaleza de Machu Picchu. Esse é um caminho bastante conhecido por mochileiros que se aventuram a conhecer parte da América do Sul.

Com as malas prontas – uma mochila gigante e uma pequena mala de mão, saio de São Paulo para encontrar os brothers em Floripa. Vamos eu, Lucas e Leonardo. Ou, mais informal, Mi, Faraco e Gorges.

A primeira noite em Floripa é agitada. Encontro o pessoal e eu, Gorges e Finha vamos a uma balada na Lagoa que, não fosse a cerveja e as gatinhas do Finha, estaria fadada ao fracasso.

Ainda estamos no “bem-bom”. Na casa do Gorges com comida, cama macia e banho. Não sei o que vem pela frente. O que vamos encontrar? De qualquer forma, tendo a concordar com o famoso guerrilheiro que empreendeu uma viagem de maiores proporções pela América Latina. Acho que vou sair dessa viagem mudado, ou ao menos diferente. Bem diferente.

Curiosidade. Mente aberta. Vontade de arriscar. (propaganda da Shell em uma revista)

2+2=5?

Dois mais dois é igual a quanto? No regime autoritário de 1984 é quanto o Grande Irmão quiser

(Nineteen Eighty-Four, Companhia Editora Nacional, 2003)

O que passa pela sua mente quando se pensa em uma sociedade totalitária? Toque de recolher, julgamentos sem o devido processo legal, guerras? George Orwell imaginou, em 1948, um mundo sufocante onde governos tipo Hitler e Stalin seriam coisa de criança quando comparados ao poder do Grande Irmão, o Big Brother.

Clássico do que especialistas chamam de literatura política, 1984 traz um mundo aterrador, dividido em três superestados que estão em guerra permanente. O objetivo da guerra não é vencer o inimigo, mas manter no poder certo grupo dominante. As pessoas não têm liberdade de ir e vir e, muito menos, de pensar. Em grande parte das residências, um objeto chamado teletela “vê” o que todo mundo faz. O Estado detém a memória: todos os registros do que aconteceu antes da chegada do Grande Irmão ao poder foram modificados e sofrem alterações assim que uma notícia, artigo ou opinião entrem em conflito com as necessidades do momento. Nada havia além do Partido: “tudo se fundia e confundia num mundo de sombras no qual, por fim, a data do ano se tornara incerta”.

A coesão interna é obtida não apenas pela opressão, mas também pela elaboração de um novo idioma - a Novilíngua - que impediria que qualquer opinião contrária ao Partido fosse expressa. Trata-se de uma coleção de vocabulários enxutos que condensa ou remove sentidos a fim de restringir o pensamento. Uma vez que as pessoas não pudessem se referir a algo, isso passaria a não existir. A palavra mais usada no livro, seguindo o novo idioma, é duplipensar. Seu significado corresponde ao fato de o indivíduo conviver simultaneamente com duas crenças opostas, aceitando ambas.

“Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da Democracia e que o Partido era o guardião da Democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra "duplipensar" era necessário usar o duplipensar."



O livro conta a história de um funcionário do Partido, Winston Smith (referência ao primeiro-ministro inglês durante a Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill, junto a um sobrenome comum no Reino Unido: Smith) que passa da indiferença na sociedade em que está inserido à revolta. Para ele algo estava errado. Faltava alguma coisa. Não sabia o que sentia e tentava extravasar sua angústia escrevendo em um diário – sempre em um espaço fora do alcance da teletela. Se fosse pego, provavelmente se submeteria à Polícia do Pensamento, que “sumia” com as pessoas, apagando qualquer vestígio de que elas teriam um dia existido. Tornaria-se uma “impessoa”.


Com narrador em terceira pessoa, Orwell nos guia pelo caminho que Winston percorre na rebelião contra o sistema. Chega de ser mais uma engrenagem, mais uma peça da máquina do Grande Irmão. Naquele contexto, as coisas eram como o Partido quisesse que fossem. Em um desabafo, o protagonista escreve em suas anotações: “A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isto, tudo o mais decorre”.

O Grande Irmão pode controlar aquilo que temos de mais íntimo e particular: o pensamento. Para o autor, é o futuro. Um pesadelo. A metáfora do mundo que estávamos, em meados do século XX, quando o livro foi escrito: invasão de privacidade, avanços tecnológicos a favor do controle aos cidadãos, a manipulação da memória histórica, as guerras contínuas cujo objetivo não é conquistar territórios, mas manter intacta a estrutura da sociedade. Será que o planeta em que estamos vivendo vai se tornar um 1984? Ou já vivemos sob o olhar do Grande Irmão e ainda não nos demos conta?