Pedaço do livro da estrada



...porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante – pop! – pode-se ver um brilho azul e intenso...” (On the road, de Jack Kerouac, p. 25)

13















O elevador está subindo em direção ao nono andar. Passa pelo quarto, acelera no quinto e vai voando pelo sexto.


Sétimo.


No oitavo, o visor dos números em vermelho pisca. Alguma coisa deve estar errada. Em vez de parar no nono, como solicitado ao botão, o elevador sobe mais. O visor, que devia sinalizar, pela ordem, o número dez, chega ao doze, vai ao onze, depois treze e catorze. As luzes de repente se apagam e levam um segundo para reacender.


Um segundo, será? Ouve-se um barulho que ecoa pelo fosso. O elevador dá um tranco e as correntes que o sustentam no novo, décimo ou qualquer outro piso, correm soltas. Começo a cair em direção ao abismo.


Tento me acalmar. Daqui a pouco a corrente vai segurar de novo, fica tranqüilo. No milésimo de segundo seguinte o pânico se apodera de mim. Não há nada... O elevador está caindo cada vez mais rápido. Não há nada que eu possa fazer, mas nesse instante eu sou de alguma forma impelido para cima. Minhas mãos buscam desesperadamente o interfone, mas não existe interfone nesse elevador.


A queda livre se aproxima do fim, eu posso sentir. Pressiono os botões, se eu apertar o três é capaz que ele pare no terceiro andar. Não. Aperto a campainha várias vezes. Nada acontece.


Espero já o baque e visualizo o chão, os destroços. Imagino, em uma fração de milésimo de segundo, a dor. Pelo menos eu devo morrer rápido. Morrer? Alguém tem que saber que eu estou aqui. Eu vou morrer. Alguém tem que saber que eu estive aqui, que essa merda caiu, que eu tentei de tudo para sobreviver.


Uma última tentativa. Quem sabe apertando todos os botões de uma vez eu não consigo fazer isso parar. Mas minhas mãos não conseguem preencher as duas fileiras de nove botões. É impossível. Eu aperto desesperadamente um único digito. O número 13. Treze. Treze. Treze. O elevador vai encontrar o chão. Chegou a hora. Hora de morrer. Treze. Treze. Treze.


Quando eu vejo que não tem mais jeito de escapar, acabo apelando, involuntariamente, com todo o medo, peito ofegante, pânico e descontrole, por acordar.

Carta de um ex-suicida a uma amiga

Suicídio, de Édouard Manet, 1877
















Cidade de Odem, 21 de outubro de 2028

Cara amiga de San Anden, te escrevo para agradecer a ajuda naquela noite chuvosa chata, em que eu recusei sua bebida para ir embora. Lembra? Você tomou o último trago e foi embora com o guarda-chuva de flores azuis e eu segui sozinho para casa. Voltei rápido, enfrentando a chuva chata. Dormi. Adormeci. Queria desmaiar. Mas o sono não foi fácil, embora revigorante. Assombrações. Eu vi o escorpião.

Ele surgiu em cima de um fogão, sobre alguns temperos. Alho. Me assustei. Era pequeno, vermelho e, tinha certeza, mortal. Um amigo olhou e reconheceu o artrópode. Não fez nada e o escorpião vermelho logo se escondeu.

Pensei que não era besteira e fui dormir. Na cama ao lado, meu amigo não estava. A cama ficou vazia e foi por ela que o escorpião chegou. Subiu à parede e parou pouco mais alto que eu. Eu não podia fazer outra coisa. Uma chinelada rápida ia dar cabo do animal. E foi isso que fiz. Antes ele que eu.

Mas a força não foi suficiente. O pequeno, vermelho e mortal escorpião não morreu. E ainda caiu em minha cama, avançando contra mim. Visualizei o futuro. Eu seria envenenado e logo estaria paralisado. A dor não seria forte, um pouco como picada de abelha. Mas quanto mais eu me mexesse, correndo para pedir ajuda e resfolegando enquanto descesse a escada, o veneno se espalharia e me mataria. Em breve eu estaria morto e ninguém ficaria sabendo disso. Eu precisava fazer alguma coisa, gritar, buscar ajuda. Eu preciso do soro!

Daí o medo me dominou. Senti o horror do frio na barriga se espalhar ad infinitum. Mirei o escorpião nos olhos. Ele já não era de todo vermelho. Sua cabeça estava branca. Seu olhar em minha direção. Eu ainda tinha tempo, mas pouco. O velho medo tira a angústia por alguns momentos. Ele investiu contra mim e quase me pegou.

Desvencilhei-me e voltei a dar-lhe outra chinelada na cabeça. Agora com mais força. Era matar para não morrer. E ele ainda sobreviveu, cambaleando, provavelmente perdendo os sentidos.

O filho da puta ainda teve tempo de investir contra mim outra vez. O chinelo voou mais uma vez e o escorpião vermelho, branco, pequeno e mortal estava morto. Eu matei o escorpião. Tive que matar o escorpião. Todos temos que matar o escorpião. E então me curei.


Cara amiga de San Anden, obrigado pela força. Eu matei o escorpião.


Vai!

O professor Karam, na aula de Teoria do Jornalismo, deu o estalo que faltava: “... É preciso muito vocabulário, muita leitura e treinamento. Muito treino”. E com o sotaque gaúcho típico: “É pra ralar”.

Ele tá certo. Hora de voltar. Me lembrou do meu amigo Rodrigo, gaúcho de Santa Maria que morava comigo em Córdoba. Perto da hora do almoço, ele, que me chamava de “Pedro Bial, o repórter boêmio”, variando de vez em quando para “repórter da noite”, disse:

- Acorda, Pedro. Vamos atrás da notícia!

E ele tava certo também.