Carta de um ex-suicida a uma amiga

Suicídio, de Édouard Manet, 1877
















Cidade de Odem, 21 de outubro de 2028

Cara amiga de San Anden, te escrevo para agradecer a ajuda naquela noite chuvosa chata, em que eu recusei sua bebida para ir embora. Lembra? Você tomou o último trago e foi embora com o guarda-chuva de flores azuis e eu segui sozinho para casa. Voltei rápido, enfrentando a chuva chata. Dormi. Adormeci. Queria desmaiar. Mas o sono não foi fácil, embora revigorante. Assombrações. Eu vi o escorpião.

Ele surgiu em cima de um fogão, sobre alguns temperos. Alho. Me assustei. Era pequeno, vermelho e, tinha certeza, mortal. Um amigo olhou e reconheceu o artrópode. Não fez nada e o escorpião vermelho logo se escondeu.

Pensei que não era besteira e fui dormir. Na cama ao lado, meu amigo não estava. A cama ficou vazia e foi por ela que o escorpião chegou. Subiu à parede e parou pouco mais alto que eu. Eu não podia fazer outra coisa. Uma chinelada rápida ia dar cabo do animal. E foi isso que fiz. Antes ele que eu.

Mas a força não foi suficiente. O pequeno, vermelho e mortal escorpião não morreu. E ainda caiu em minha cama, avançando contra mim. Visualizei o futuro. Eu seria envenenado e logo estaria paralisado. A dor não seria forte, um pouco como picada de abelha. Mas quanto mais eu me mexesse, correndo para pedir ajuda e resfolegando enquanto descesse a escada, o veneno se espalharia e me mataria. Em breve eu estaria morto e ninguém ficaria sabendo disso. Eu precisava fazer alguma coisa, gritar, buscar ajuda. Eu preciso do soro!

Daí o medo me dominou. Senti o horror do frio na barriga se espalhar ad infinitum. Mirei o escorpião nos olhos. Ele já não era de todo vermelho. Sua cabeça estava branca. Seu olhar em minha direção. Eu ainda tinha tempo, mas pouco. O velho medo tira a angústia por alguns momentos. Ele investiu contra mim e quase me pegou.

Desvencilhei-me e voltei a dar-lhe outra chinelada na cabeça. Agora com mais força. Era matar para não morrer. E ele ainda sobreviveu, cambaleando, provavelmente perdendo os sentidos.

O filho da puta ainda teve tempo de investir contra mim outra vez. O chinelo voou mais uma vez e o escorpião vermelho, branco, pequeno e mortal estava morto. Eu matei o escorpião. Tive que matar o escorpião. Todos temos que matar o escorpião. E então me curei.


Cara amiga de San Anden, obrigado pela força. Eu matei o escorpião.


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