Uma ficção diferente das outras?

Consuelo Lins, no texto "Documentário: uma ficção diferente das outras?" define documentário como a forma de cinema que sempre se apoiou na imagem concebida como uma boa representação do real.

"Com mais ou menos paixão, os movimentos dessa forma de cinema procuraram constantemente um melhor adequação entre a imagem e o mundo, entre a representação e a realidade, pela utilização de certas técnicas, práticas e estéticas, qualificadas então como mais aptas do que outras para capturar a realidade e o mundo."


Para isso, ela estabelece cinco pontos de partida:

1) Todo documentário é um artefato construído por blocos de espaço-tempo, fabricando seus efeitos, impressões, sensações, pontos de vista, visões de mundo.

2) No entanto, por mais artificial que seja a imagem automática, há sempre um “grão de real” que adere à imagem e ultrapassa toda figuração (=natureza paradoxal);

3) Não há técnica, metodologia ou estética mais aptas que outras para captar o real e o mundo;

4) O ato de filmar implica uma metamorfose daqueles que filmam e dos que são filmados, que pode ser assumida ou disfarçadas por convenções estabelecidas;

5) O documentário não tem uma essência realista e não é necessariamente mais próximo da realidade do que a ficção. Ele foi criado foi criado a partir dessa crença, que é na verdade uma invenção, produzida por práticas e discursos específicos. Isso não impede que essa forma de cinema tenha aberto belas vias para o cinema em geral.

DVD duplo da VII Semana do Jornalismo

Divido o relatório que fizemos sobre erros e acertos na autoração do DVD da VII Semana do Jornalismo. Depois de muito (muito, muitíssimo) trabalho, o DVD duplo está pronto!

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O lançamento do DVD da VII Semana do Jornalismo acontece nesta segunda-feira, dia 24 de novembro, em uma confraternização no bar Volantes às 19h.

O produto, vendido a R$ 15, conta com dois DVDs. O primeiro disco apresenta o compacto das palestras e mesas de discussão. O disco II conta com entrevistas exclusivas com alguns convidados: Fred Melo Paiva, Arthur Dapieve, Ruy Castro, Cremilda Medina, Roger Rodriguez, Diego Barredo e Marcelo Tas.

O lucro será revertido para o Centro Acadêmico Adelmo Genro Filho.

***
















Era relativamente fácil e, inexplicavelmente, nunca feito : pegar as palestras e mesas de discussão e colocá-las tudo num DVD para registro, curiosidades e formas de difusão além dos cinco dias do evento.

Para nós, da VII Semana, faltou sentar e planejar tudo antecipadamente. As coisas foram surgindo, as tarefas, acumulando, e tivemos que tomar decisões em cima da hora, algumas unilateralmente, inclusive.

As coisas não foram muito planejadas em dois aspectos: a transmissão ao vivo e a autoração do DVD.

Nas seis semanas anteriores, a transmissão ao vivo ficava por conta do pessoal de ensino à distância, do LIBRAS, que, comandado pelo técnico Roberto Vargas, faziam o trabalho, ao qual já estão acostumados, sem grandes problemas.

Mas na VII Semana, eles não puderam nos ajudar. Na abertura, segunda-feira, o material que tínhamos gravado estava na baixíssima qualidade da transmissão ao vivo. Colocar a primeira palestra e mesa de discussão no DVD seria um problema. O jeito foi nos (re)organizarmos para, além da captura pela câmera que estava transmitindo ao vivo, gravarmos em qualidade aceitável com as câmeras mini-DV do curso.

Essa organização em cima da hora exigiu custos. Estamos trabalhando com aproximadamente dez acontecimentos de mais de uma hora. Em formato AVI (o de mais alta resolução), uma hora de fita equivale a 13 gigabytes! Haja fitas mini-DV, e espaço físico para tanto. Tivemos que improvisar.

Fizemos assim: além da câmera do “ao vivo”, colocamos duas outras câmeras, uma ao lado da “ao vivo”, e outra mais próxima ao palco, do lado direito da platéia. Essas câmeras gravariam com mini-DV e teríamos chance de fazer uma edição mais elaborada, com mudança de planos e angulações. Se duas câmeras filmam a mesma coisa, é fundamental sincronizá-las. Seria a função da claquete. Nós fazíamos no “olhômetro”: três, dois, um – um olhava para o outro e apertava REC.

Até que deu mais ou menos certo. Achamos que o lance do DVD não era, necessariamente, inserir todas as palestras e mesas (até porque temos o limite de mídia de 4.7GB ou duas horas de gravação na qualidade EP). Tínhamos que editar no máximo trinta minutos que capturariam, na medida do possível, o espírito do evento.

Então, de noite, quando as palestras acabavam, uns iam jantar, outros iam encher a cara no bar. O pessoal do vídeo tinha que agilizar tudo para o dia seguinte. O conteúdo das fitas do dia era capturado direto para um PC, por cabo firewire, e, se possível, a edição do dia já era feita. Isso porque era difícil trabalhar com arquivos de mais de 20GB por vez.

Nosso amadorismo prejudicou o resultado final. Gravamos na melhor resolução – formato AVI -, mas o DVD (todos eles, desde o camelô com “Tropa de Elite” à edição especial gold deluxe de “O Senhor dos Anéis”) compacta para o formato MPEG2, que ocupa um terço do tamanho do AVI. Mas como nos dividimos para editar as palestras e mesas, alguns exportaram em mpeg2-dvd, outros em outras formas de mpeg-2. Não sei por que, na hora de jogar tudo no DVD alguns arquivos não eram lidos.

Minha solução, pensada no auge do nervosismo: reconverter tudo para AVI e jogar em AVI no programa, que, por sua vez, readapta o formato para mpeg2 automaticamente.

Só fiz isso porque tive o auxílio de uma máquina potente e de um HD externo. Mas creio ter feito uma das piores coisas. Apesar de ter consultado algumas pessoas para saber se essa reconversão prejudicaria a qualidade – e esses consultores terem respondido “não” -, me pareceu, vendo o resultado final, que estraguei as imagens.

Dois

Eu pensava que era fácil autorar um DVD. Com os vídeos na mão era só jogar tudo, colocar um menu, umas letrinhas e listo. Mas, de novo, parte por amadorismo e parte por trabalhar com muitos arquivos pesados, demorei mais do que esperava.

Nenhum programa – desses tipo Roxio ou “faça seu DVD em five minutes” – servia para minha idéia de DVD, com menus animados, fontes coloridas, música de fundo. Optei pelo Adobe Encore, o mais profissional dos programas de autoração.

Foi difícil aprender o básico. Algumas coisas tive que readaptar. Até agora não sei por que o programa não aceitou o menu animado. Tive que usar uma figura estática do photoshop. O som no menu deu problema e travou infinitas vezes na hora de terminar (depois de testes bem sucedidos, diga-se de passagem). Tive que deixar sem som.

Resumo: foram jogados no lixo 12 mídias de DVD. As últimas por mais amadorismo: eu esqueci que, para rodar em aparelhos de DVDs, a velocidade de gravação deve ser bem baixa. Nervoso que estava, coloquei em 4x, mas 8x já dá conta do recado.

Finalmente, depois de muito trabalho e tensão, o primeiro DVD da Semana do Jornalismo estava pronto. Não do jeito bom, não do modo ideal (a qualidade de imagem deixou a desejar, a edição, cortes e planos, podia ser melhor, o som nas entrevistas deixou (muito) a desejar, faltou equalizar o som de tudo, a cobertura do churrasco do Dalton devia ter sido mais contundente), mas estava pronto.

Entrevistas

Só um DVD com o compacto das palestras, nos parecia, muito pouco. Desde o começo, tínhamos a idéia de entrevistar alguns convidados. Tínhamos que aproveitar a oportunidade de encontrar os caras bambas do Jornalismo que viriam.

De início, veio a idéia de um bate-papo antes de entrevistas. Mais do que uma lista de perguntas prontas, no estilo de alguém que precisa preencher um relatório (ou pauta, como chamam por aí), o objetivo era conversar, conhecer as idéias daquele pessoal, bem no estilo das propostas de Cremilda Medina e o famoso diálogo possível. Mais ou menos como escreve Arlindo Machado no livro A televisão levada a sério:

“A eficiência do diálogo na televisão (em nosso caso, para o DVD), depende de uma autonomia real (...). Não pode haver debate quando há o constrangimento de um script determinando o que se deve dizer, de que maneira dizer, ou em que circunstância intervir”.

Enfim: diálogos. E longe da produção do estúdio. Queríamos ir até o lugar onde os convidados estavam, quem sabe gravar com a praia de fundo. Mas a idéia não deu certo. Precisávamos de carros para chegar, baterias potentes (só disponibilizadas para as câmeras de TCC) e microfones de lapela que não sofressem interferências.

Resolvemos usar o estúdio da UFSC mesmo. Então tínhamos que arrumá-lo. Logo na segunda-feira, fiquei um bom tempo conversando com Henrique Guião, do Labtele, sobre nossa propostas, sobre luzes, sobre locais onde o entrevistado ficaria mais bem posicionado. Ele fez a cenografia e as luzes. Optamos planos que mostrassem os bastidores: a câmera aparecendo, a televisão (-zinha) de fundo, etc.

Com a produção pronta fomos “para o ar” com Fred Melo Paiva. Eu e Fernanda Dutra. Eu, com uma folha na mão; ela, com um caderninho. Mas não estava escrito nada nem comigo, nem com ela. Nada melhor para conversar em vez de entrevistar.

Com o resto das entrevistas foi mais ou menos a mesma coisa. A idéia era deixar livre para participar das entrevistas quem quisesse, não só para o DVD da Semana, mas para outras atividades do curso.

Acho que deu mais ou menos certo, com exceção (de novo) da qualidade da imagem e, principalmente do áudio. A tentativa de conversa, não tanto. Pareceu entrevista mesmo no final das contas.

Final

Temos, obviamente, muito (muitíssimo) que aprender e melhorar. De qualquer forma, para um primeiro experimento, me pareceu bom.

Para as próximas semanas, acho que deve ter uma equipe fixa só para se dedicar aos vídeos e à produção de DVD. Quanto mais gente comprometida com o resultado final tiver nessa área, a carga (pesadíssima) vai ser aliviada. É um trabalho estressante e exaustivo, mas vale a pena quando se chega no produto final. Mesmo sem menus animados nem sons de fundo.

FIZ+Sotaques I

O programa FIZ+Sotaques é um tipo – pioneiro, diga-se de passagem – de jornalismo colaborativo. Funciona da seguinte forma: os videorrepórteres espalhados por algumas partes do Brasil (não todas, infelizmente, e a maioria ainda na região sudeste e sul) encontram gente interessante que ajude a compor um quadro plural sobre um determinado tema. Daí o título "Sotaques" (o "FIZ" é por ser ligado ao canal da editora Abril, o FIZTV).

Assim, com todas as entrevistas e imagens de apoio enviadas para a sede, o programa é editado com base nas falas das pessoas, sem o aparecimento (muitas vezes desnecessários) de um repórter asséptico ou da chamada voice-over (ou voz de Deus).

Eu participo firmemente há umas seis ou sete edições e. preparando minha parte para ser exibida toda segunda-feira, às 22h45 no FIZTV (www.fiztv.com.br) – e no canal 16 da TVA analógica e no canal 20 da TVA digital, em São Paulo (capital e interior), Santa Catarina (Florianópolis e Camboriú), Paraná (Curitiba e Foz do Iguaçu), Rio de Janeiro (capital) e Minas Gerais (Uberlândia) - eu aprendi bastante muita coisa, a maioria delas dificilmente de ser veiculada por se tratar de minha relação subjetiva com os temas e, principalmente, com os entrevistados.

O Fiz+Sotaques tem o diferencial da história ser contada pela voz dos diversos entrevistados, com os sotaques característicos deles. Mas não sejamos ingênuos. Isso é simplesmente a linguagem que adotamos. A edição está presente como em todos os outros produtos jornalísticos e o resultado não deixa de ser o recorte que nós, jornalistas, demos ao tema. Me parece, porém, que a história pela na voz das pessoas é mais interessante, dá um ar mais do tipo "a história deles contada por eles" (e daí o slogan do programa: "Fiz+Sotaques: jornalismo no plural").

Me fascina esse método – bem utilizado pelo documentarista Eduardo Coutinho – por ser diferente da linguagem que se usa habitualmente na maioria dos veículos de TV, em que o repórter aparece mais como o doutrinador, o sabidão, ainda que, repito, as várias vozes estejam a favor de uma edição.

O programa inteiro pode ser visto em www.sotaquesdobrasil.blogspot.com

Abaixo, o último programa, dividido em dois blocos:



¡¡Películas!!













Eu tenho um vício, uma coisa que muitas vezes me atrapalha a vida. Eu largo os estudos e o trabalho para depois, esqueço das leituras básicas da faculdade e cancelo compromissos. Não é droga, não é álcool, nem chocolate. O meu problema é com filmes.

Acontece de repente. Surge uma ordem no meu cérebro. Sou obrigado a cumprí-la no instante em que ela aparece. Ou, no máximo, quando não é possível ter um DVD na hora – como num ponto de ônibus, na sala de aula ou no meio de uma festa -, até dá para planejar para depois, desde que o depois não demore muito.

“Preciso ver um filme.” Chega a ser uma necessidade. Tudo fica para outra hora. Se tenho muitas coisas para fazer, minha mente perturbada acaba bolando uma estratégia para que eu possa saciar o vício sem muita culpa.

É o que está acontecendo agora. Quando eu penso que devia – e em muitos casos, devia mesmo – estar fazendo outra coisa que não assistindo a uma película, meu pensamento me diz que ver esse filme vai me fazer bem.

A desculpa do momento só funciona com filmes em inglês. “É para desenvolver vocabulário e fluência na língua”, diz uma parte de mim, tirando qualquer peso na consciência. Agora que já tenho as coisas mais difíceis para viver os próximos três meses nos Estados Unidos – o visto norte-americano e financiamento para a viagem -, parece imprescindível assistir tantos filmes falados em inglês quanto possível.
E assim vivemos todos. Cada um com suas manias e vícios...

Pedaço do livro da estrada



...porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante – pop! – pode-se ver um brilho azul e intenso...” (On the road, de Jack Kerouac, p. 25)

13















O elevador está subindo em direção ao nono andar. Passa pelo quarto, acelera no quinto e vai voando pelo sexto.


Sétimo.


No oitavo, o visor dos números em vermelho pisca. Alguma coisa deve estar errada. Em vez de parar no nono, como solicitado ao botão, o elevador sobe mais. O visor, que devia sinalizar, pela ordem, o número dez, chega ao doze, vai ao onze, depois treze e catorze. As luzes de repente se apagam e levam um segundo para reacender.


Um segundo, será? Ouve-se um barulho que ecoa pelo fosso. O elevador dá um tranco e as correntes que o sustentam no novo, décimo ou qualquer outro piso, correm soltas. Começo a cair em direção ao abismo.


Tento me acalmar. Daqui a pouco a corrente vai segurar de novo, fica tranqüilo. No milésimo de segundo seguinte o pânico se apodera de mim. Não há nada... O elevador está caindo cada vez mais rápido. Não há nada que eu possa fazer, mas nesse instante eu sou de alguma forma impelido para cima. Minhas mãos buscam desesperadamente o interfone, mas não existe interfone nesse elevador.


A queda livre se aproxima do fim, eu posso sentir. Pressiono os botões, se eu apertar o três é capaz que ele pare no terceiro andar. Não. Aperto a campainha várias vezes. Nada acontece.


Espero já o baque e visualizo o chão, os destroços. Imagino, em uma fração de milésimo de segundo, a dor. Pelo menos eu devo morrer rápido. Morrer? Alguém tem que saber que eu estou aqui. Eu vou morrer. Alguém tem que saber que eu estive aqui, que essa merda caiu, que eu tentei de tudo para sobreviver.


Uma última tentativa. Quem sabe apertando todos os botões de uma vez eu não consigo fazer isso parar. Mas minhas mãos não conseguem preencher as duas fileiras de nove botões. É impossível. Eu aperto desesperadamente um único digito. O número 13. Treze. Treze. Treze. O elevador vai encontrar o chão. Chegou a hora. Hora de morrer. Treze. Treze. Treze.


Quando eu vejo que não tem mais jeito de escapar, acabo apelando, involuntariamente, com todo o medo, peito ofegante, pânico e descontrole, por acordar.

Carta de um ex-suicida a uma amiga

Suicídio, de Édouard Manet, 1877
















Cidade de Odem, 21 de outubro de 2028

Cara amiga de San Anden, te escrevo para agradecer a ajuda naquela noite chuvosa chata, em que eu recusei sua bebida para ir embora. Lembra? Você tomou o último trago e foi embora com o guarda-chuva de flores azuis e eu segui sozinho para casa. Voltei rápido, enfrentando a chuva chata. Dormi. Adormeci. Queria desmaiar. Mas o sono não foi fácil, embora revigorante. Assombrações. Eu vi o escorpião.

Ele surgiu em cima de um fogão, sobre alguns temperos. Alho. Me assustei. Era pequeno, vermelho e, tinha certeza, mortal. Um amigo olhou e reconheceu o artrópode. Não fez nada e o escorpião vermelho logo se escondeu.

Pensei que não era besteira e fui dormir. Na cama ao lado, meu amigo não estava. A cama ficou vazia e foi por ela que o escorpião chegou. Subiu à parede e parou pouco mais alto que eu. Eu não podia fazer outra coisa. Uma chinelada rápida ia dar cabo do animal. E foi isso que fiz. Antes ele que eu.

Mas a força não foi suficiente. O pequeno, vermelho e mortal escorpião não morreu. E ainda caiu em minha cama, avançando contra mim. Visualizei o futuro. Eu seria envenenado e logo estaria paralisado. A dor não seria forte, um pouco como picada de abelha. Mas quanto mais eu me mexesse, correndo para pedir ajuda e resfolegando enquanto descesse a escada, o veneno se espalharia e me mataria. Em breve eu estaria morto e ninguém ficaria sabendo disso. Eu precisava fazer alguma coisa, gritar, buscar ajuda. Eu preciso do soro!

Daí o medo me dominou. Senti o horror do frio na barriga se espalhar ad infinitum. Mirei o escorpião nos olhos. Ele já não era de todo vermelho. Sua cabeça estava branca. Seu olhar em minha direção. Eu ainda tinha tempo, mas pouco. O velho medo tira a angústia por alguns momentos. Ele investiu contra mim e quase me pegou.

Desvencilhei-me e voltei a dar-lhe outra chinelada na cabeça. Agora com mais força. Era matar para não morrer. E ele ainda sobreviveu, cambaleando, provavelmente perdendo os sentidos.

O filho da puta ainda teve tempo de investir contra mim outra vez. O chinelo voou mais uma vez e o escorpião vermelho, branco, pequeno e mortal estava morto. Eu matei o escorpião. Tive que matar o escorpião. Todos temos que matar o escorpião. E então me curei.


Cara amiga de San Anden, obrigado pela força. Eu matei o escorpião.


Vai!

O professor Karam, na aula de Teoria do Jornalismo, deu o estalo que faltava: “... É preciso muito vocabulário, muita leitura e treinamento. Muito treino”. E com o sotaque gaúcho típico: “É pra ralar”.

Ele tá certo. Hora de voltar. Me lembrou do meu amigo Rodrigo, gaúcho de Santa Maria que morava comigo em Córdoba. Perto da hora do almoço, ele, que me chamava de “Pedro Bial, o repórter boêmio”, variando de vez em quando para “repórter da noite”, disse:

- Acorda, Pedro. Vamos atrás da notícia!

E ele tava certo também.

Ituzaingó, 1480









Desde 16 de julho eu estou no Brasil. Mas sair da Argentina não foi fácil. Deixar os amigos que viraram família durante o tempo de intercâmbio, a rotina já acostumada em Córdoba e, principalmente, o receio de voltar, a certeza de que as coisas mudaram. Porque as coisas sempre mudam.

De qualquer forma, acho que a questão com a qual um dia todos vamos nos deparar sobre a vida, sobre momentos e instantes, é uma só, forte e decisiva: E aí, valeu a pena?

De minha parte, impossível esquecer tudo o que essa viagem representou e o que o número mil cuatrocientos ochenta simboliza.

¡Qué bueno vivir con esta gente!


Machuca

Machuca (Chile, Espanha, 2004). Dirigido por Andrés Wood. Com: Matías Quer, Ariel Mateluna, Ernesto Malbran. Sinopse: Gonzalo é um garoto de classe média que estuda no Colégio Saint Patrick, o mais conceituado de Santiago, Chile. No governo Allende, garotos pobres passam a estudar ali, entre eles está Pedro Machuca. É então que ambos passam a se conhecer e a firmar uma amizade, apesar do abismo social que separa as classes econômicas a que pertencem. A política se mistura com a história particular dos dois. Um caminho irreversível do qual nunca poderão se esquecer. Nem se quisessem.











Imagens fortes. É isso o que tenho a dizer sobre Machuca, um filme daqueles que você sai “estranho” depois das quase duas horas de projeção. É um estranhamento indefinível, como sentir algo entalado na garganta, um tipo de sufocamento, mas longe do melodrama simples e das lágrimas fáceis.

Imagens fortes. Não no sentido de se ver sangue, corpos despedaçados, tripas à mostra. Forte no sentido de significativas, de potentes. Imagens que expressam idéias com as quais não sabemos lidar ao final. O que eu achei do filme? A velha pergunta feita desde os primórdios do Cinema traz uma simplicidade minimalista. Existem filmes que não se enquadram no “sim, gostei, vamos tomar sorvete” ou “não, que filme ruim, vamos dormir”. É difícil assistir a Machuca e ficar impune.

A narrativa é clássica e o que chama a atenção não é o claro antagonismo militares x “subversivos”, que já vimos tantas vezes em outras produções. Aqui a relação é mais íntima, difícil de ser explicada. Trata-se de ver a grande mudança que acontece na vida de Gonzalo, mudança que não é explícita em um comportamento radical ou em atitudes violentas. Mas, sim, na significação de um olhar. Olhar de incompreensão. A visão brutal de realidade tão diferente da sua. Uma visão que vai mudá-lo para sempre.

A política associada diretamente na vida das pessoas, alterando-as. O menino que amadurece. É levado a amadurecer. Uma série de fatos que o levam ao lugar onde Machuca vive. Ali, o lugar que o transformará. Onde ele vai se ver enfrentado por militares e vai se safar usando o mecanismo de defesa que a vida lhe ensinou. “Eu não sou daqui. Olhe para mim!”.

Os abismos de classe, os opostos ambientes, o abraço da mãe que não imagina o que está se passando na vida interior do filho. Quem sabe nem ele mesmo o saiba, mas de alguma forma, Gonzalo tem uma certeza: alguma coisa está acontecendo. E ele não sabe o que fazer. Nem nós, depois de ver o filme.

Emilio do Cinema

“A Argentina tem uma educação preconceituosa. Pode falar que não, que você se dá bem com todos, com o chinês, com mulato. Isso até você ver três negros sentados juntos”.

Entrei na sala de Emilio, o secretário/supervisor do curso de Cinema da Universidad Nacional de Córdoba, sem a intenção de sair de lá conhecendo mais sobre o país em que estou vivendo desde março. Com seu jeito frouxo de pronunciar as palavras, ele fez uma comparação interessante entre Argentina e Brasil, e revelou o que sentiu quando foi ao Brasil pela primeira vez, em 1982, e viu os negros que são raros em grande parte da Argentina.

“Negros argentinos? A gente quase não vê. Você viu algum em Córdoba? Se viu foram um ou dois e pode ser que não sejam argentinos.”

E mudando de assunto, mas não de tema: “O Brasil é um país mais plural. Na Literatura, por exemplo, há uma produção de Norte a Sul que representa o país, de certa forma. E os roteiros de televisão refletem isso quando adaptam as obras literárias para a TV. Aqui, mesmo os grandes da Literatura – Borges, Cortázar, Sábato -, refletem o pensamento de Buenos Aires. Claro que Buenos Aires tem 20 milhões de um total de 40 milhões de argentinos. É meio país. Mas a Argentina não é só Buenos Aires...”

Emilio intercala os assuntos de forma quase imperceptível. Do carnaval como expressão social, ele traça nossas semelhanças – “a classe média e seu pensamento são exatamente iguais nos dois países” -, fala sobre resquícios africanos na música típica de Córdoba, o cuarteto, vai para nossas músicas, que têm sempre a palavra “alegria” como lugar-comum, e chega ao Cinema, comparando obras que falam de um tema muito parecido, mas o tratam de formas diferentes, refletindo as diferenças entre Brasil e Argentina: Cidade de Deus e El Polaquito.

Quarenta e cinco minutos depois, eu nem lembrava que tinha ido ali para definir o meu futuro na universidade.

CQC brasileiro















Domingo passado foi dia de juntarmos a brasileirada aqui da casa para assistir ao CQC brasileiro. O programa, comandado por Marcelo Tas, existe na Argentina há mais de 10 anos e faz um sucesso absurdo.

A versão brasileira estreou em março e já chegou causando polêmica. Em um sinal claro de abuso de poder e de censura em plena era democrática (inclusive com um ex-operário como presidente), proibiram os repórteres do programa de entrar no Congresso Nacional.
















Para tentar mudar isso, o CQC está em uma campanha buscando assinaturas para reverter essa decisão de nosso querido Legislativo. Basta entrar em www.cqcnocongresso.com.br e assinar.

Me parece que a decisão de barrar esses repórteres brasileiros na chamada Casa do Povo veio da natureza essencial do CQC. Tirando a parte de humor fácil e de encenações bobas, há alguns quadros que realmente fazem aquilo que outros veículos não fazem. Como na frase proclamada por Marcelo Tas todo final de programa: "Eles estão à solta, mas nós estamos atrás". E isso incomoda muita gente.


Brasileirada na Argentina

E no Brasil x Argentina de ontem, fomos ao Bar Brasileiro, o único de Córdoba, para torcer por nossa seleção. Se estívéssemos no Brasil, tenho certeza de que seria "só mais um jogo". Mas tudo muda de perspectiva quando você é brasileiro, sua seleção vai disputar uma partida importante e ainda mais contra quem?

Pena que o jogo foi feio, a seleção deu mais um fiasco e o empate teve sabor de derrota.

Mas pensando melhor, se perdendo ou ganhando a gente ia ou ser zoado ou ser odiado por aqui, acho que para nós - brasileiros morando na Argentina - o empate foi mesmo o melhor negócio.

Na foto 1, a brasileirada da casa (com exceção de Rodrigo): André, Eduardo, Rúbia, Ivia, eu, Taísa, Juli (epa, essa é argentina) e Fernando Fernet.

Foto 2: Ivia pinguça e a bebida dos dos deuses; Foto 3: Juli x Taísa "mengão êo".





Che completaria 80 anos no último sábado












A camiseta ficou famosa, a foto foi a mais reproduzida do mundo e os pensamentos de Che viraram citações nas agendas chiques de jovens da classe média. Exceção talvez de movimentos como o Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, que ainda usa as mensagens de Ernesto Guevara para buscar alternativas ao modelo hegemônico neoliberal. Mas mesmo ali, a bandeira está mais presente que o pensamento. E os olhos de Che, com o fundo de uma estrela branca em contraste com o vermelho, significam pouco ou nada. O que ele estava olhando naquele momento? O futuro da América Latina unida? Um grande bolo de chocolate? Ou quem sabe alguma mulher bunduda que passava ali?


O grande socialista e sonhador virou mercadoria. A estrela de cinco pontas, símbolo do Exército Vermelho Bolchevique, virou logotipo de marca de cerveja. E as palavras do peruano José Carlos Mariátegui, o chamado primeiro marxista da América, nunca foram mais atuais e verdadeiras, apesar de terem sido escritas há oitenta e três anos:


"A civilização burguesa sofre da falta de um mito, de uma fé, de uma esperança. O mito move o homem na Historia. Sem um mito, a existência humana não tem nenhum sentido histórico. Os povos capazes de uma vitória foram os povos capazes de mitos múltiplos."


Para ele, os mitos não seriam bem ilusões falsas, mas sim crenças mobilizadoras que condensam esperanças coletivas e desejos populares.


O mito de Che Guevara serviu para aquilo contra o que ele mais lutou: o modelo capitalista.

MUY INTERESANTE pero no tanto...

A versão argentina (também comercializada no Uruguai e no Paraguai) da SUPER INTERESSANTE (não sei qual veio primeiro, se a nossa ou a deles), é muito (muitíssimo) inferior à nossa.

Muy Interesante traz, nesse mês, uma matéria de capa sobre a mente humana com os seguintes dizeres: “Mente Criminal: podremos predecir el delicto? La ciencia investiga el cerebro para saber si el delincuente dice la verdad”.

Na primeira página, quem sabe a melhor da revista, uma charge de folha inteira de Quino, o criador da Mafalda, a menina que fala de política nos termos mais comuns e ingênuos (será?) do cotidiano.

A diagramação, aqui, é um pouco mais sóbria, digamos. Há espaços em branco sin dramas e não há a característica profusão de cores e imagens de infográfico da SUPERINTERESSANTE. Quem sabe um meio termo seria o ideal, afinal os infográficos são uma parte importante na transmissão da mensagem, principalmente quando eles estão na medida certa: nem de mais, nem de menos.

No olho da matéria de capa já perdemos a vontade de ler o texto: “com a ajuda de técnicas modernas biomédicas, os cientistas tentam associar condutas delitivas com áreas do cérebro. Mas ninguém tem ainda a ultima palavra sobre as raízes profundas da delinqüência. Para que eu precisaria ler o resto? O que o texto poderia me acrescentar?

Com um texto picotado em muitíssimos intertítulos (média de dois por página) e com mesmo estilo em todas as matérias (foram jornalistas ou computadores quem escreveram?), a matéria de capa traz algumas coisas legais, mais questionamentos, como o fato de, nos EUA, o país dos processos, muita gente estar sendo absolvida de crimes pelo estudo do cérebro. Algo como “meu cérebro é o criminoso; eu, não” - o que um professor de Direito e Psiquiatría da Pensilvania rechaça: “Algumas pessoas com transtornos cerebrais semelhantes podem não serem violentas. Os cérebros não cometem crimes, quem os comete são as pessoas”. Isso nos leva ao “entorno” de um indivíduo, ao meio em que vive, em que foi criado, elementos que, de certa forma, influem seu comportamento futuro.

E a matéria surpreende pela discussão que exibe: “nada determina o comportamento dos indivíduos como os processos que têm lugar no cérebro”, diz um professor de Psicologia de Harvard.

É, não estava tãããão mal. O fechamento é assim: “De fato, pode a neurociência contribuir a criar um mundo mais seguro? Ninguém pode hoje assegurar isso. Como não se pode dizer que seja um argumento irrevogável para não levar um criminoso à prisão”. Conclusão que a que já havíamos sido apresentados, mesmo antes de ler o texto.

Ah, há um box preguiçoso na última página. É um depoimento de um doutor em neurologia escrito por ele, com seus jargões médicos misteriosos. A função do jornalista seria entrevistar o médico e fazer a decodificação ou tradução para seus leitores, não? Ou se esqueceram de que não sou médico nem estudante de medicina?

Outro sinal de preguiça, tosquice e má vontade é o trecho do livro que o físico Stephen Hawking escreveu com sua filha Lucy. Publicaram uma parte do livro dele e acham isso o máximo. Deve ser para fazer publicidade, afinal a revista “sorteia dez livros entre as primeiras 100 cartas que chegarem à redação”. Mas mesmo para uma matéria publicitária seria interessante um texto jornalístico. A vida de Stephen Hawking, afinal, sempre vale boas notas.

E a matéria mais bem-humorada (e a melhor da edição): “Con la boca abierta”. Vamos falar de bocejo, por que bocejamos, para que serve o bocejo? Comigo foram três ou quatro bocejos entre as cinco páginas. Não porque estavam chatas de ler e sim porque o bocejo é uma das condutas mais contagiosas. É só ver alguém bocejando que você acaba também o imitando. E isso só entre humanos e certos primatas. Crianças antes dos 5 anos não se contagiam e autistas também não. Incapacidade de conectar-se com o próximo?

Interessante, ao menos, é a idéia de que o bocejo tenha uma função evolutiva fundamental. Como as pombas. Uma pomba vê um pedestre se aproximando e voa, sendo seguida imediatamente por suas companheiras, ainda que essas ignorem a causa do alarme. Então, o bocejo poderia ser uma ferramenta para propagar o estágio de vigilância em um grupo. Hum... E eu que pensava que era só para entrar oxigênio no cérebro (argumento que a Ciência já desmentiu com experiências usando gás carbônico).

Seguimos com matérias não tão interessantes, ou com pauta interessante, mas mal aproveitadas pelos repórteres e editores, como a “Visita à fábrica de gênios” no MIT (Insitituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA) e uma matéria histórica sobre Tutmosis III.

Se a nossa SUPERINTERESSANTE se destaca sobretudo pelos infográficos, a MUYINTERESANTE traz fotos muito bem feitas, como na série sobre as abelhas. Mas nada mais que isso.

Termino a revista com um jogo de sodoku, talvez mais interessante do que a revista do mês.

Velhice

Devo estar ficando velho... Depois da "quebraceira" de quinta-feira - em uma festa da Tropicália brasileira (ver gente do Consulado bêbada não tem preço...) e depois em um boliche con todo al costo - não me deu vontade de sair na sexta nem no sábado. O frio pode ter influído, preferi ficar em casa vendo alguns filmes. Devo estar ficando velho.

Sinais dos tempos...

O julgamento dos “soldados vitoriosos” argentinos

Antes de o julgamento começar, enquanto as 160 pessoas entram no tribunal e vão ocupando as cadeiras reservadas, um grito forte de mulher ecoa na sala: “Chegou a hora!”. Alguns minutos depois, às 10h34 de uma terça-feira fria na cidade Córdoba, Argentina, o juiz presidente inicia a sessão que vai julgar oito ex-militares.

Entre os réus, um senhor de 80 anos se destaca. Impassível e sem cruzar as pernas como fazem seus companheiros, seu blaser cinza repousa em seu colo enquanto seus olhos fixam a bancada dos juízes. Os jornalistas que o observam são tentados a descrever os olhos daquele senhor com o clichê “olhos de águia”, mas essa descrição não vai aparecer no jornal do outro dia, assim como também não vai aparecer o xingamento de um radialista ao observar Luciano Benjamín Menéndez: “Olha como está velho, o filho da puta!”

Fora do prédio do Tribunal Federal de Córdoba, a polícia fecha o quarteirão para evitar a proximidade de mil manifestantes, a maioria composta por estudantes e militantes de partidos de esquerda. Dentro do edifício é possível escutar as músicas de protesto:

“Olé, olé... Olé, olá. Vení, Menéndez, vení, mirá. Los subversivos cada día somos más!"

“Hoje meu sentimento é contraditório. Por um lado é uma satisfação ver os ditadores no banco dos réus. Mas a alegria seria completa com o julgamento de todos os que participaram desse massacre social, desse genocídio”, declara Eduardo Sales, do Partido Obrero, referindo-se aos cerca de 30 mil desaparecidos na última Ditadura Militar Argentina (1976-83).

No último banco à direita da primeira fila

De acordo com os partidos de esquerda e dos movimentos sociais presentes, o maior genocida é Luciano Benjamín Menéndez, como nos dizeres pichados na rua da casa do ex-mlitar. Ele está sendo julgado ao lado de sete ex-militares, “dignos subordinados”, nas palavras do próprio Menéndez, que atenderam a suas ordens de 1975 a 79 no Terceiro Corpo do Exército, organização responsável por dez das 23 províncias argentinas durante a última Ditadura Militar argentina (1976-83). Ele, porém, parece alheio às manifestações, ou já se acostumou a elas, que começaram a ser mais freqüentes depois de 1984, quando um fotógrafo astuto percebeu o momento de registrar uma imagem que permanece viva na mente de todos os presentes no julgamento.

Benjamín Menéndez estava saindo da gravação de um programa de TV quando foi insultado por um grupo de pessoas. A reação foi imediata. Sacou um punhal e avançou em direção a seus detratores. Os acompanhantes do ex-militar o detiveram, agarrando seu braço, e a foto saiu nos jornais do dia seguinte: a faca nas mãos, o tal “olhar de águia” e o braço impedido de agir.

Agora ele está sentado no último banco à direita da primeira fila. Os réus estão protegidos por uma peça de vidro blindada, que em nada impede o insulto da irmã de um desaparecido durante a Ditadura. “Covardes, assassinos, torturadores. Senhores juízes, por favor, façam justiça”, clamou enquanto o presidente do tribunal, o juiz Jaime Díaz Gavier a repreendia, expulsando-a da sala. “Eu não vou permitir manifestações de nenhuma natureza. Estamos em um julgamento”, respondeu o magistrado.

Organizações como H.I.J.O.S., Abuelas da Plaza de Maio ou Familiares de Desaparecidos e Detidos por Razões Políticas (FDDRP) lutam há muito tempo para levar os ex-ditadores ao banco dos réus. Emilia Dambre é uma senhora da mesma idade de Benjamín Menéndez. Teve dois filhos desaparecidos e, a partir daí, começou a militar no FDDRP. “Quando comecei a buscar meus filhos é que passei a ver o que eles defendiam e vi que tudo pelo que eles lutavam era para chegar a um mundo melhor”, conta Emilia que, na mesma semana do julgamento completaria 57 anos de casada, caso seu marido Santiago ainda fosse vivo.










Assim como Emilia, Mercedes Toloso de Bustos não vai esquecer nunca do dia em que teve seu filho seqüestrado. “Eu tenho memória, muita memória”, diz ela depois de passar pela barreira policial e ir em direção ao tribunal. “Meu filho tinha 21 anos quando pegaram ele e minha vida é dividida em antes e depois de seu desaparecimento. Se eu pudesse olhar nos olhos do assassino eu ia perguntar aonde ele colocou meu filho. Eu quero saber onde ele está, eu tenho o direito maternal de saber...”, emociona-se. Ela não consegue terminar de conversar com os jornalistas e entra chorando no saguão principal.

Ao ver a multidão de repórteres, microfones, gravadores, câmeras e luzes, muitas luzes em sua direção, Valéria Chávez parece confusa e atordoada. Sem saber muito bem para que lado olhar, ela responde a todas as perguntas calmamente, sem vergonha dos olhos marejados e da voz embargada, nem quando alguém pergunta o que ela diria a Menéndez. “Não sei se lhe diria algo”, respondeu. “Eu não quero me encontrar com ele. Nada me vai devolver o que eu perdi, mas acho que a justiça vai sanar um pouco minha dor e a dor de muitos que estão na mesma situação.”

O caso

Tudo aconteceu na manhã de seis de novembro de 1977. O casal Hilda Flora Palacios e Humberto Brandalisis sai em direção à casa de dois amigos. Vão acompanhados das duas filhas de Hilda, frutos de um casamento anterior: Valeria, de três anos, e Soledad, de um ano de idade. Chegando lá, Humberto se retira e diz que volta para o almoço, sem saber que só veria a mulher trinta e oito dias depois, quando ambos seriam assassinados.

Humberto não regressou até o anoitecer. Foi então que os amigos resolvem levar Hilda para a casa dela. Vão no mesmo carro o casal de amigos e seus três filhos, além de Hilda, Valeria e Soledad. Na residência, porém, policiais à paisana já os esperavam.

Os oficiais deixam as crianças na casa da sogra do casal e levam todos encapuzados ao centro clandestino de detenção e extermínio “La Perla”, uma dependência militar que funcionava no centro da cidade de Córdoba.

“Não tenho recordações do dia em que seqüestraram minha mãe, só do que me contaram depois”, lembra Valéria antes de se despedir dos repórteres e entrar na sala do julgamento, driblando as muitas câmeras e flashes fotográficos.

Humberto Brandalisis e Hilda Palacios foram fuzilados junto a Carlos Enrique Lajas e ao pintor Raúl Cardoso, todos militantes do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PTR). O plano, batizado de “Operativo Ventilador”, baseava-se no método de matar os opositores e depois colocar os cadáveres na rua, simulando um enfrentamento contra as forças militares. Então desapareciam com os corpos a fim de não deixar evidências que, no futuro, poderiam incriminar os próprios militares.

Os restos mortais de Hilda, no entanto, puderam ser recuperados. Em 2004, um exame de DNA determinou a correspondência entre o cadáver encontrado em um cemitério individual e amostras de sangue de Valeria. De acordo com resolução da Justiça Federal Argentina, Hilda Palacios faleceu “como conseqüência de choque hemorrágico traumático causado por ferida de bala”.

Na ocasião, Valeria declarou que aquele dia, de certa forma, foi bom. “Antes disso eu não tinha nem registro nem recordações. Agora pelo menos ela não é mais uma desaparecida.”

Valeria e Soledad, ao lado das associações H.I.J.O.S., Familiares Desaparecidos e Detidos por Razões Políticas, são quem processam oito ex-militares pelos crimes de seqüestro, aplicação de tortura e assassinato.

Subversão marxista

No segundo dia do julgamento, os outros sete acusados negam os crimes pelos quais estão sendo julgados e se reservam ao direito de permanecer calados. Mas Menéndez opta por falar. Pega o microfone, desdobra um papel, tira os óculos e começa a leitura, primeiro dizendo que o tribunal era incompetente para julgá-lo.

“A lei vigente quando a subversão marxista iniciou o assalto a nossa pátria afirma que eu teria que ser julgado por um tribunal militar”, diz, concentrando toda a atenção dos presentes na sala, sem referir-se que seu reclamo foi rechaçado por juízes de primeira instância e tribunais de alçada. Com sua voz levemente rouca, ele continua: “Sou o único responsável da atuação da minha tropa. Por isso, a meus dignos subordinados daquela época, não se pode acusá-los de nada e muito menos privá-los da liberdade”.

Luciano Benjamín Menéndez está convencido de que fazia parte de “forças legais responsáveis por enfrentar e vencer o terrorismo marxista”. No lado esquerdo do peito ele, junto com os outros sete acusados, usa um broche com as cores da bandeira argentina transpassada por uma fita negra representando luto. Um gesto provocador que evoca o ponto de vista dos réus, que não reconhecem a justiça civil e marcam o julgamento como indigno. Pensam que eles, os antigos militares, “soldados vitoriosos”, como disse Menéndez, não deveriam sentar-se no banco indigno dos réus, afinal de contas eles “venceram os terroristas subversivos que assaltaram o país porque não acreditavam nas instituições republicanas”.

O julgamento começou em 27 de maio, mas está longe de acabar. Sua longa duração é compatível com a revolta e clamor por justiça dos manifestantes, que lá fora ainda cantam: “Olé, olé... Olé, olá. Como a los nazi, les va a pasar. A donde vayan los iremos a buscar”.

Mayday

Infelizmente não deu certo mandar o vídeo da cobertura da 34a Feira Internacional do Livro de Buenos Aires. O vídeo está pronto já faz tempo, mas não consigo colocá-lo no youtube porque tem mais de 10 minutos e nem jogar aqui no blog, graças, acho, à conexão à internet baixa que temos aqui na casa.

Até poderia mostrar a versão de 2mb (!), mas a qualidade é pessimamente péssima.

Quem sabe quando eu voltar para o Brasil e achar uma conexão à internet mais rápida dê para pôr o vídeo aqui com um qualidade não tão ruim. Quem sabe...

El Diario de El Chavo del Ocho

Escrito por Roberto Gomez Bolaños, “El Diario de El Chavo del Ocho” reúne anectodas del personaje más famoso de tooooda Latinoamérica. ¡Tenía que ser el Chavo del Ocho!

Así el Chavo del Ocho resume lo que aprendió en la clase de Historia del profesor Longalaniza,o más bien, el profesor Jirafales:

“... Entonces empezó otra Guerra de la Revolución. Pero no contra Don Porfirio, sino todos contra todos; porque todos querían ser presidentes.

“El único que no quería ser presidente era Emilio Zapata. El que él quería era que todo mundo fuera campesino.

“Lo malo fue que los ricos hacendados preferían ser ric
os hacendados antes que ser campesinos; y como no se ponían de acuerdo, los campesinos empezaron a matar a los ricos hacendados y los ricos hacendados empezaron a matar a los campesinos. Y total, que la tierra no la ocuparon ni los campesinos ni los ricos hacendados, sino los muertos que tenían que enterrar; porque en ese tiempo mataron a tantos, que el promedio fue que la gente se moría uno por persona.”

“Y, al final: “Lo más curioso es que en México ha habido muchas calles que tienen nombres de presidentes, y un presidente que tiene nombre de Calles”.

Y otro día el profesor estaba contando que México perdió la mitad de su territorio, y la Popis dijo: “Por no fijarse dónde dejan las cosas”.

"La venganza nunca es plena, mata el alma y la envenena." (Jaimito el cartero)

“Nuestro país no es un reino, sino una república. Por eso aquí no se debe decir, por ejemplo, que un árbol pertenece al reino vegetal y una pedra al reino mineral. Lo que se debe decir es que el árbol pertenece a la republica vegetal y la pedra a la republica mineral.”

Ossobuco e canibalismo

Acabo de ler um artigo antropológico chamado "Canibalismo y pobreza", em que os autores analisam o discurso midiático de um caso que aconteceu em maio de 1996, quando alguns habitantes de uma favela de Rosario, Argentina, alimentaram-se de gatos.

O texto nos alerta para a importância que o alimento tem na vida humana:

"Ao incorporar um alimento, o homem incorpora não só nutrientes essenciais para a vida, mas também um universo de idéias, imagens e sentidos em função dos quais se define como um tipo particular de homem, ou seja, define sua identidade individual e coletiva".

O tabu de comer um animal de estimação - "animais humanizados por excelência" - nos leva à metáfora do canibalismo e do shows de manchetes e depoimentos escandalizados. Comer nossos animais de estimação seria, então, quase um ato canibal.

E isso me leva a pensar, junto com o texto, que pensar sobre o que comemos é pensar sobre quem somos e quem seremos e quem queremos ser. A velha frase do "você é o que você come". Mas e se você não tiver nada para comer? Vale se alimentar de mascotes?

A propósito, aí vai a foto do almoço de sábado, que, a proósito, não tinha nenhum animal de estimação no menu: ossobuco, tomate e fritas.


Entre choques e crises

Na 34ª Bienal Internacional do Livro de Buenos Aires, fui atraído por um filme que estava passando no stand da Editorial Paidós. Vi as imagens de presos sendo eletrocutados em contraste a um ambiente branco de neve. O filme era uma publicidade muito inteligente do novo livro da jornalista e economista canadense Naomi Klein.

Sob o título A Doutrina do Choque, a autora expõe sua tese de que os desastres naturais de nosso século, bem como as guerras e o terrorismo são cenários de uma política de choque impetrada pelo neoliberalismo. Ela parte da idéia de que o choque, que causa confusão e desnorteamento nas pessoas, é parte integrante de um fenômeno político causado pela globalização.

Na entrevista que concedeu ao periódico cultural Ñ, do jornal El Clarin de 26 de abril, Naomi Klein fala sobre o conceito de crise, fundamental para entender o que vivemos hoje, a guerra do Iraque, o combate ao chamado terrorismo. A crise do 11 de setembro, a crise do furacão Katrina, as crises que são necessárias para desestabilizar a população e, assim, implementar políticas que não seriam facilmente aceitas, caso não tivéssemos em (ela de novo) crise.

E, pensando bem, essa idéia está presente na implementação das ditaduras latino-americanas da segunda metade do século XX. A crise por que fez-se acreditar que as nações estavam passando, a ameaça comunista e a instabilidade econômica buscavam legitimar o novo governo, a chamada Revolução.

As políticas dos militares que, apoiados pelos Estados Unidos, foram astutos para negar aquilo que o grande jornalista argentino, Rodolfo Walsh – ele mesmo “desaparecido” nos centros de detenção do governo militar – acusava publicamente: usar a violência massiva para conseguir objetivos econômicos que mantinham o povo aterrorizado e eliminava obstáculos que, de outro modo, certamente teriam provocado uma revolta popular.”

A crise que nos faz mudar, que nos faz considerar as coisas de outra forma, que nos faz reavaliar, mas que não é natural. Antes disso, é forçada, provocada, impetrada por uma política que se apóia no medo, na guerra iminente e no estado de sítio.

Foto: www.vagalume.uol.com.ar

Obs: O vídeo da cobertura da 34ª Bienal Internacional do Livro de Buenos Aires está quase pronto.

Uma quinta-feira na Universidad del Cocktail


Na única universidade de coquetelaria do mundo, o instrutor responsável pelas aulas de coquetéis mais elaborados tem 26 anos e se chama Marcelo Farello. Mas se você o chamar assim é capaz que não te responda, porque o nome pelo qual ele é conhecido, no meio em que trabalha, é Cuba. Simplesmente Cuba.

Localizada em Buenos Aires, a Universidad del Cocktail foi fundada há mais ou menos dez anos pelo patrão de Cuba, um homem corpulento, que usa camisa aberta no peito e enfeita-se com correntinhas e artigos de prata e ouro. Fabian Quiroga fica sentado em sua sala - a maior da universidade - resolvendo problemas e dando risadas. Ele, porém, não gosta de jornalistas. Quando vê que um se aproxima da sua Universidade, ele faz questão de ficar frente a frente com o sujeito, ordenar-lhe que mande, por escrito, o que pretende investigar, bem como uma pauta pré-programada e o nome do veículo onde trabalha. Depois de analisar se o jornalista não fará mal a seus negócios, nem vai ficar fuçando em coisas, a seu ver, desnecessárias, Quiroga o “ajuda” a fazer as fotos (ou ele mesmo as faz), escolhendo o melhor ângulo, a melhor iluminação e a melhor visão que quer que os leitores tenham da Universidade.

Mas Fabian Quiroga permite, a quem converse um pouco com ele e ria quando ele ri, que se assista a uma aula, assim, despretensiosamente, só para “ver como é”. E são nessas aulas que Cuba ensina seus alunos a andar sempre com um cartão de visitas no bolso e o currículo no pen-drive. “Essa profissão é feita, mais do que as outras, de contatos sociais. Quando se chega no serviço é necessário esquecer dos problemas e manter o sorriso na cara. Senão é melhor nem ir trabalhar”, ensina.

A sala de aula é um bar cheio de bebidas, copos de todos os tipos, gelo à vontade, e acessórios para o trabalho do bartender. Estaria completo não fosse a falta de vodka, o que fará Cuba escolher tragos que não levem vodka para que os alunos, na segunda parte da aula, vão para trás do balcão e elaborem drinques que serão avaliados e talvez degustados.


Os quatro estudantes do segundo módulo já passaram do nível das bebidas rápidas e pouco elaboradas, próprias das casas noturnas onde o que importa é ser rápido para atender à multidão de gente que fica no bar gritando por seu drinque. Aqui eles têm um trabalho mais profundo, uma mistura de bebidas que serão oferecidas em hotéis ou bares mais chiques, em que o coquetel sai pela média de quinze reais, dependendo do que vai nele.

Um dos alunos é Emanuel, que tem um corte de cabelo que os brasileiros classificariam como “tipicamente argentino”. Quando vai para trás do bar, exibe a habilidade de quem já trabalha fazendo tragos, mas ainda lhe falta memória, velocidade e carisma, essenciais para quem está nessa profissão. Ele, que decidiu ser barman depois de perceber que “as meninas gostam muito de quem está atrás do bar”, é o último a se apresentar na primeira rodada da avaliação semanal feita pelo instrutor. Antes dele veio Nico, um garotão que gosta de beber e trabalha em uma casa noturna.


A certa altura, depois do sexto copo de drinque, Nico, com os olhos brilhantes, pergunta a Cuba se é lícito aceitar gorjeta de clientes que peçam para colocar um pouco mais de bebida alcoólica no coquetel, uma prática que ele revela fazer com freqüência mas que não tem certeza se age certo.

Cuba tem uma forma de pensar em bar como um negócio. Pensa grande, macro, e trabalha sério para merecer os 500 pesos que cobra por evento. “Se eu sou o dono e descubro isso, te coloco na rua na hora. Você está ganhando em cima da minha bebida. Se você coloca um chorinho para cada cliente, é capaz que eu tenha um déficit de uma, duas garrafas por noite. Na semana são catorze, quinze garrafas que eu perco para você ganhar sua gorjeta”, responde, voltando à sua voz calma e didática de instrutor. “Você tem que merecer a gorjeta. Ganhar pelo seu trabalho, porque você trabalhou bem, fez um bom drinque. Gorjeta não se comercia. Ela é o reconhecimento de seu bom trabalho.”

Completando os quatro alunos do módulo dois (são quatro ao total, os dois últimos dedicados à administração e gerenciamento), está um homem de cabelos bem curtos e testa sobressalente. Ele erra em todos os itens que Cuba estava avaliando. “Se você não estudar os ingredientes dos drinques nunca poderá ser um bartender”, sentencia o instrutor, indicando com a cabeça o próximo aprendiz de bartender a ser avaliado.

Por último está Cindy, uma menina de 24 anos que, embora ele não admita abertamente, é a aluna favorita de Cuba. A estudante mais aplicada trabalha em eventos e estuda muito, de modo que já tem memória e habilidade avançadas, o que não a impede de continuar tomando notas, todo o tempo, das lições de Cuba.


Cindy cuidava da avó doente e, cansada do “blábláblá” da faculdade que cursava, queria uma profissão em que pudesse aplicar, na prática, toda a teoria que aprendia. Quando sua avó melhorou, ela se matriculou na Universidad del Cocktail e começou a trabalhar como secretária e, simultaneamente, era bartender em uma casa noturna localizada em um bairro periférico de Buenos Aires. Ela foi uma das primeiras e, como sempre, uma das últimas a sair.

São 22h e é hora de encerrar o expediente. As bebidas sobre a mesa, as que não foram tomadas por Nico ou o que restou das bebericadas de todos, são jogadas fora e o bar fica impecavelmente limpo, do mesmo jeito que estava antes da aula.

Todos se despedem e Cindy, Cuba e um outro bartender correm para tomar o metrô. Ali, todos eles já aprenderam, como um dia Nico também vai aprender, que coquetéis são para se degustar e não para, nas palavras de Cuba, “se intoxicar”.

O rei visita a Argentina

Ele entra e fica de pé no centro do palco, as costas viradas ao público. Roberto Carlos às vezes canta de costas como para ressaltar os músicos que o acompanham. Com as mãos, ordena à orquestra um pot-pourri de suas principais canções: “O Calhambeque”, “Emoções”, “Detalhes”. Mas peraí: Roberto Carlos usando um terno preto? Não pode ser.

Quem abre o show de Roberto Carlos não é Roberto Carlos, mas sim Eduardo Lages, o maestro da banda. O “rei” vem logo depois, em terno branco, a mesma posição de segurar o microfone e o velho olhar oblíquo à esquerda, como se estivesse lendo algo, ou mirando alguém, que só ele enxerga.


Logo às primeiras palavras em castelhano, o público, composto por senhoras e senhores (mais senhoras) acima dos 50 anos, como já era de esperar, aplaude, assobia e canta junto. Parecem não terem dado muita bola para o adiamento do show, que acontece em uma segunda-feira porque, no domingo, o caminhão de cenografia e luzes, que saía de Buenos Aires, não chegou à tempo.

No Orfeo Superdomo, o maior ginásio de shows de Córdoba – capacidade para pouco mais de 6 mil pessoas - Roberto Carlos finaliza sua passagem pela Argentina. E ele fala, fala muito durante o show, mas não precisa de esforço para ganhar a platéia, há muito apaixonada pelo ídolo brasileiro.
Com temas traduzidos ao espanhol, Roberto Carlos conquistou, também, a admiração dos argentinos. Muitos deles nem conhecem o Brasil, mas gostam muito dos temas do “rei”, baseados no tema do amor e feitos para o amor.


















No momento da canção “Maria Rita”, composta em homenagem à sua mulher, morta em 1999, preparou-se toda a atmosfera de emoção. A luz baixou e só um feixe azul e branco estavam apontados ao Rei, que estava sentado em frente ao piano branco. Sentenciou umas palavras cuidadosas:

“Yo tengo el placer de saber lo que es el amor. Es que un día descubrí la diferencia entre el amor y la pasión. La pasión es una reacción única, pero el amor es un sentimiento capaz de ser eterno. Un gran amor es eterno. Estoy hablando de mi gran amor: María Rita”

E começou a tocar enquanto, os telões reproduziam a letra. Na segunda frase, surgiu a palavra “pause” e Roberto Carlos parou para anunciar um problema técnico:
“Vicente, apague a luz”.

Depois de dez segundos tudo voltou ao normal e veio um respeito silencioso da platéia para escutar uma música que parece de fato emocionar o cantor, não importa quantas vezes a repita.

Roberto Carlos é “só” o artista latino-americano que teve mais discos vendidos e o brasileiro que mais vendeu discos na história. É o rei que viu o primeiro sucesso quando fazia rock brasileiro nos anos 60 e que, como um bom monarca, busca aparentar modéstia, reverenciando os treze músicos, três coristas e o maestro que tocam com ele. Abaixa a cabeça, homenageia as pessoas à frente, mas sabe, no fundo, que o rei é ele. E todos na banda o sabem. E a platéia também. E, além disso, todos querem ser governadas por ele.

João, um dos dois guitarristas, um tipo gordinho e simpático, desce do palco ao final do show para tirar foto com uma ou duas mulheres. Elas pedem seu e-mail e ele pergunta alguma sugestão para sair na noite cordobesa, algum lugar pra comer (com ou sem duplo sentido). Uma delas parece se interessar, mas o real interesse não é pelo João, não é pela gente da corte, mas pelo rei. Ela tenta entregar-lhe uma foto tirada do jornal para que ele passe a Roberto Carlos a fim de um autógrafo. Mas João afirma o que elas não suspeitavam: “Eu vejo o Roberto Carlos o mesmo que vocês. Essa hora ele já deve estar pegando o jatinho para viajar”. Claro que não é bem assim. De qualquer forma, João, 29 anos, que desde os 14 já admirador de Roberto Carlos, sabe, no fundo, seu lugar no reinado. Tira foto com as meninas, mas nunca será João. Vai ser sempre “o guitarrista de Roberto Carlos”. E as fotos terão a legenda: “nós com o guitarrista do Roberto Carlos”.

Pouco antes de acabar o espetáculo – uma falsa parada estratégia para voltar mais duas vezes sob os gritos histéricos de “otra, otra”, Roberto Carlos leva montes de rosas nas mãos. Com elas – brancas e vermelhas -, ele finge beijá-las (na verdade nem chega a encostar a boca) e joga às mulheres apaixonadas, que lutam pela “flor do rei”. São senhoras como a administradora Lilia Ghisolfi, 54 anos, que se declara fã incondicional das músicas românticas e das palavras doces do rei. Na companhia de três amigas, ela assiste, impassível, ao show: nunca esteve tão perto do ídolo brasileiro.
Até que chega alguém da produção e anuncia no ouvido de Roberto Carlos que não havia mais tempo. O show, que durou quase duas horas, tinha que acabar, o ginásio tinha que fechar, as pessoas tinham que trabalhar no dia seguinte, e o rei precisava descansar. Ele não faz muitos shows desses. São uns quarenta por ano e estão diminuindo. São muito caros, não acessíveis a qualquer um que queira assistir a uma apresentação que não seja pelo especial de fim de ano da Globo. No reino de Roberto Carlos plebeu não entra. Ele é o primeiro a abandonar o palco enquanto os músicos esperam alguns segundos, a ver se o rei não mudou de idéia e quer cantar mais um pouco. Sabem, também, que o rei tem poderes e que poderia, se fosse seu desejo, cantar mais uma, duas ou dez canções. Mas as luzes se acendem e os músicos começam a guardar os instrumentos. O show na Argentina acabou. Só Deus sabe quando Roberto Carlos volta.

Isso é o que assegura o vendedor paulista que está fora do Orfeo Superdomo. Com um pacote com três fotos montadas de Roberto Carlos, mais uma fachinha dessas de colocar na cabeça, ele grita às pessoas que estão saindo:

“Mirá, fotos de Roberto Carlos, fotos del show”.

O velho jeitinho brasileiro. As fotos não são do show, mas quem se importa? As senhoras passam e pagam dez pesos pelo material. Os maridos tentam andar rápido para não serem obrigados a ouvir suas acompanhantes pedir-lhes para comprar o souvenir que, sabem bem, não deve servir para muita coisa depois de passado o afã pós-espetáculo.


A última senhora que sai é Milagros, acompanhada de sua amiga da natação, Érica, muitos anos mais nova. Milagros é do tipo que gosta de falar e se distrai enquanto explica ou pergunta algo que muito lhe interessa. É mais uma a morrer de amores pelo rei e chega a largar o volante da direção do carro para contar do tempo em que ouviu Roberto Carlos pela primeira vez, há muitos anos, quando estava de férias no Brasil.

O carro vai um pouco para o lado, atravessa a pista lateral, onde uma moto passa e o motoqueiro buzina. Mas para ela nada mais interessa. Ela viu Roberto Carlos.

Rocio

Ele chega à avenida e faz sinal para o primeiro táxi que vê. O carro amarelo pára e ele entra, sem dar muita importância para a mulher loira, de cabelos bem lisos, que está sentada ao lado do taxista.

- Pode me levar ao Museu da Indústria?
- Sim, claro. Da onde você é? – pergunta o taxista
- De Brasil.

“Ah, olha só”, ele diz, virando-se à mulher ao lado. “Você sabe que os brasileiros têm pica grande, né?”. Ao que a mulher responde: “O quêêe? É verdade?”

Ele crê que está louco. Só pode. Não deve ter entendido direito. Pica grande? Que história é essa? Quando a mulher se vira e o encara nos olhos, seu sangue parece esvair-se do corpo. Percebe que não era uma mulher. Era um travesti, com maquiagem bem contornada nos olhos. Mas ele não a olhou nos olhos, porque os olhos dela estavam virados para as calças dele.

- É verdade isso que ele falou?
- Ih, eu não sei! – respondeu ele, tentando aparentar naturalidade.

O travesti virou novamente para a frente e disse: “ai, assim eu fico loucaaaa!”.
O taxista começou a contar de uma balada brasileira que fica justamente lá no Museu da Industria. “Você vai gostar de lá”, disse à acompanhante, dando um tapa forte com a parte de fora da mão no peito dela.

Ela nem ligou. Voltou atrás e continuou mirando-o. Ele, sem saber o que fazer, e tentando não encontrar o olhar dela, buscou mudar de assunto:

- Mas vocês conhecem o Brasil?
- Não, não conheço. Mas ficaria louca para conhecer. Ainda mais agora. Você já teve alguma relação homossexual?
- Não.
- Ai, mas você é virgem?
- Ai, pára! Você vai envergonhar o menino – disse o taxista. Em seguida, perguntou à ela – Você é virgem da parte de trás, não é?
- Ai......

Ele, do banco de trás, não pôde entender o que ela respondeu. Estava surpreso com o caminho deserto pelo qual estavam indo, umas ruas que nunca vira. Mil pensamentos passaram por sua cabeça. Não sabia onde tinha se metido. “O que será que esses dois vão fazer? Eles podem parar em um mato e tentar me estuprar. E o que eu faço agora? Merda! Anoto a placa do veículo. Sem dúvida. Já devia ter feito. Que merda pegar táxi com gente acompanhada. Juro que não faço mais isso”.

O susto veio de novo e o sangue pareceu gelar pela segunda vez em menos de dez minutos. O travesti, perguntando se no Brasil existiam muitos travestis, estava mexendo no porta-luvas. O que seria? Uma arma? Era agora que o obrigariam a tirar a roupa? “Filhos da puta”, pensou. “Que porra é essa”?

Ela tirou uma camisinha e entregou a ele, que não pegou o “presente”.

- Ai, vai! Veste aí – pediu ela.

Ele não fez nada a não ser dar uma risada nervosa.

- Ah, deixa disso! Se liga – disse o taxista, salvando-o do sufoco.

Finalmente chegaram ao Museu da Indústria. O taxímetro marcava pouco mais seis pesos. Ele deu o dinheiro e ansiava por sair do carro. Abriu a porta e ouviu:

- Ei, peraí!

Olhou para o travesti loiro, que chegou mais perto e lhe entregou um papel:

- Olha, para qualquer coisa que você precisar.

Ali havia um número de telefone e um nome, escrito de caneta azul piscina:

156360322
Rocio

- Tá, tá! Pode deixar.

E saiu do táxi amarelo sem olhar para trás. Só virou quando ouviu o carro arrancar pela rua.
Pôde, então, respirar aliviado.