O rei visita a Argentina

Ele entra e fica de pé no centro do palco, as costas viradas ao público. Roberto Carlos às vezes canta de costas como para ressaltar os músicos que o acompanham. Com as mãos, ordena à orquestra um pot-pourri de suas principais canções: “O Calhambeque”, “Emoções”, “Detalhes”. Mas peraí: Roberto Carlos usando um terno preto? Não pode ser.

Quem abre o show de Roberto Carlos não é Roberto Carlos, mas sim Eduardo Lages, o maestro da banda. O “rei” vem logo depois, em terno branco, a mesma posição de segurar o microfone e o velho olhar oblíquo à esquerda, como se estivesse lendo algo, ou mirando alguém, que só ele enxerga.


Logo às primeiras palavras em castelhano, o público, composto por senhoras e senhores (mais senhoras) acima dos 50 anos, como já era de esperar, aplaude, assobia e canta junto. Parecem não terem dado muita bola para o adiamento do show, que acontece em uma segunda-feira porque, no domingo, o caminhão de cenografia e luzes, que saía de Buenos Aires, não chegou à tempo.

No Orfeo Superdomo, o maior ginásio de shows de Córdoba – capacidade para pouco mais de 6 mil pessoas - Roberto Carlos finaliza sua passagem pela Argentina. E ele fala, fala muito durante o show, mas não precisa de esforço para ganhar a platéia, há muito apaixonada pelo ídolo brasileiro.
Com temas traduzidos ao espanhol, Roberto Carlos conquistou, também, a admiração dos argentinos. Muitos deles nem conhecem o Brasil, mas gostam muito dos temas do “rei”, baseados no tema do amor e feitos para o amor.


















No momento da canção “Maria Rita”, composta em homenagem à sua mulher, morta em 1999, preparou-se toda a atmosfera de emoção. A luz baixou e só um feixe azul e branco estavam apontados ao Rei, que estava sentado em frente ao piano branco. Sentenciou umas palavras cuidadosas:

“Yo tengo el placer de saber lo que es el amor. Es que un día descubrí la diferencia entre el amor y la pasión. La pasión es una reacción única, pero el amor es un sentimiento capaz de ser eterno. Un gran amor es eterno. Estoy hablando de mi gran amor: María Rita”

E começou a tocar enquanto, os telões reproduziam a letra. Na segunda frase, surgiu a palavra “pause” e Roberto Carlos parou para anunciar um problema técnico:
“Vicente, apague a luz”.

Depois de dez segundos tudo voltou ao normal e veio um respeito silencioso da platéia para escutar uma música que parece de fato emocionar o cantor, não importa quantas vezes a repita.

Roberto Carlos é “só” o artista latino-americano que teve mais discos vendidos e o brasileiro que mais vendeu discos na história. É o rei que viu o primeiro sucesso quando fazia rock brasileiro nos anos 60 e que, como um bom monarca, busca aparentar modéstia, reverenciando os treze músicos, três coristas e o maestro que tocam com ele. Abaixa a cabeça, homenageia as pessoas à frente, mas sabe, no fundo, que o rei é ele. E todos na banda o sabem. E a platéia também. E, além disso, todos querem ser governadas por ele.

João, um dos dois guitarristas, um tipo gordinho e simpático, desce do palco ao final do show para tirar foto com uma ou duas mulheres. Elas pedem seu e-mail e ele pergunta alguma sugestão para sair na noite cordobesa, algum lugar pra comer (com ou sem duplo sentido). Uma delas parece se interessar, mas o real interesse não é pelo João, não é pela gente da corte, mas pelo rei. Ela tenta entregar-lhe uma foto tirada do jornal para que ele passe a Roberto Carlos a fim de um autógrafo. Mas João afirma o que elas não suspeitavam: “Eu vejo o Roberto Carlos o mesmo que vocês. Essa hora ele já deve estar pegando o jatinho para viajar”. Claro que não é bem assim. De qualquer forma, João, 29 anos, que desde os 14 já admirador de Roberto Carlos, sabe, no fundo, seu lugar no reinado. Tira foto com as meninas, mas nunca será João. Vai ser sempre “o guitarrista de Roberto Carlos”. E as fotos terão a legenda: “nós com o guitarrista do Roberto Carlos”.

Pouco antes de acabar o espetáculo – uma falsa parada estratégia para voltar mais duas vezes sob os gritos histéricos de “otra, otra”, Roberto Carlos leva montes de rosas nas mãos. Com elas – brancas e vermelhas -, ele finge beijá-las (na verdade nem chega a encostar a boca) e joga às mulheres apaixonadas, que lutam pela “flor do rei”. São senhoras como a administradora Lilia Ghisolfi, 54 anos, que se declara fã incondicional das músicas românticas e das palavras doces do rei. Na companhia de três amigas, ela assiste, impassível, ao show: nunca esteve tão perto do ídolo brasileiro.
Até que chega alguém da produção e anuncia no ouvido de Roberto Carlos que não havia mais tempo. O show, que durou quase duas horas, tinha que acabar, o ginásio tinha que fechar, as pessoas tinham que trabalhar no dia seguinte, e o rei precisava descansar. Ele não faz muitos shows desses. São uns quarenta por ano e estão diminuindo. São muito caros, não acessíveis a qualquer um que queira assistir a uma apresentação que não seja pelo especial de fim de ano da Globo. No reino de Roberto Carlos plebeu não entra. Ele é o primeiro a abandonar o palco enquanto os músicos esperam alguns segundos, a ver se o rei não mudou de idéia e quer cantar mais um pouco. Sabem, também, que o rei tem poderes e que poderia, se fosse seu desejo, cantar mais uma, duas ou dez canções. Mas as luzes se acendem e os músicos começam a guardar os instrumentos. O show na Argentina acabou. Só Deus sabe quando Roberto Carlos volta.

Isso é o que assegura o vendedor paulista que está fora do Orfeo Superdomo. Com um pacote com três fotos montadas de Roberto Carlos, mais uma fachinha dessas de colocar na cabeça, ele grita às pessoas que estão saindo:

“Mirá, fotos de Roberto Carlos, fotos del show”.

O velho jeitinho brasileiro. As fotos não são do show, mas quem se importa? As senhoras passam e pagam dez pesos pelo material. Os maridos tentam andar rápido para não serem obrigados a ouvir suas acompanhantes pedir-lhes para comprar o souvenir que, sabem bem, não deve servir para muita coisa depois de passado o afã pós-espetáculo.


A última senhora que sai é Milagros, acompanhada de sua amiga da natação, Érica, muitos anos mais nova. Milagros é do tipo que gosta de falar e se distrai enquanto explica ou pergunta algo que muito lhe interessa. É mais uma a morrer de amores pelo rei e chega a largar o volante da direção do carro para contar do tempo em que ouviu Roberto Carlos pela primeira vez, há muitos anos, quando estava de férias no Brasil.

O carro vai um pouco para o lado, atravessa a pista lateral, onde uma moto passa e o motoqueiro buzina. Mas para ela nada mais interessa. Ela viu Roberto Carlos.

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