Machuca

Machuca (Chile, Espanha, 2004). Dirigido por Andrés Wood. Com: Matías Quer, Ariel Mateluna, Ernesto Malbran. Sinopse: Gonzalo é um garoto de classe média que estuda no Colégio Saint Patrick, o mais conceituado de Santiago, Chile. No governo Allende, garotos pobres passam a estudar ali, entre eles está Pedro Machuca. É então que ambos passam a se conhecer e a firmar uma amizade, apesar do abismo social que separa as classes econômicas a que pertencem. A política se mistura com a história particular dos dois. Um caminho irreversível do qual nunca poderão se esquecer. Nem se quisessem.











Imagens fortes. É isso o que tenho a dizer sobre Machuca, um filme daqueles que você sai “estranho” depois das quase duas horas de projeção. É um estranhamento indefinível, como sentir algo entalado na garganta, um tipo de sufocamento, mas longe do melodrama simples e das lágrimas fáceis.

Imagens fortes. Não no sentido de se ver sangue, corpos despedaçados, tripas à mostra. Forte no sentido de significativas, de potentes. Imagens que expressam idéias com as quais não sabemos lidar ao final. O que eu achei do filme? A velha pergunta feita desde os primórdios do Cinema traz uma simplicidade minimalista. Existem filmes que não se enquadram no “sim, gostei, vamos tomar sorvete” ou “não, que filme ruim, vamos dormir”. É difícil assistir a Machuca e ficar impune.

A narrativa é clássica e o que chama a atenção não é o claro antagonismo militares x “subversivos”, que já vimos tantas vezes em outras produções. Aqui a relação é mais íntima, difícil de ser explicada. Trata-se de ver a grande mudança que acontece na vida de Gonzalo, mudança que não é explícita em um comportamento radical ou em atitudes violentas. Mas, sim, na significação de um olhar. Olhar de incompreensão. A visão brutal de realidade tão diferente da sua. Uma visão que vai mudá-lo para sempre.

A política associada diretamente na vida das pessoas, alterando-as. O menino que amadurece. É levado a amadurecer. Uma série de fatos que o levam ao lugar onde Machuca vive. Ali, o lugar que o transformará. Onde ele vai se ver enfrentado por militares e vai se safar usando o mecanismo de defesa que a vida lhe ensinou. “Eu não sou daqui. Olhe para mim!”.

Os abismos de classe, os opostos ambientes, o abraço da mãe que não imagina o que está se passando na vida interior do filho. Quem sabe nem ele mesmo o saiba, mas de alguma forma, Gonzalo tem uma certeza: alguma coisa está acontecendo. E ele não sabe o que fazer. Nem nós, depois de ver o filme.

Emilio do Cinema

“A Argentina tem uma educação preconceituosa. Pode falar que não, que você se dá bem com todos, com o chinês, com mulato. Isso até você ver três negros sentados juntos”.

Entrei na sala de Emilio, o secretário/supervisor do curso de Cinema da Universidad Nacional de Córdoba, sem a intenção de sair de lá conhecendo mais sobre o país em que estou vivendo desde março. Com seu jeito frouxo de pronunciar as palavras, ele fez uma comparação interessante entre Argentina e Brasil, e revelou o que sentiu quando foi ao Brasil pela primeira vez, em 1982, e viu os negros que são raros em grande parte da Argentina.

“Negros argentinos? A gente quase não vê. Você viu algum em Córdoba? Se viu foram um ou dois e pode ser que não sejam argentinos.”

E mudando de assunto, mas não de tema: “O Brasil é um país mais plural. Na Literatura, por exemplo, há uma produção de Norte a Sul que representa o país, de certa forma. E os roteiros de televisão refletem isso quando adaptam as obras literárias para a TV. Aqui, mesmo os grandes da Literatura – Borges, Cortázar, Sábato -, refletem o pensamento de Buenos Aires. Claro que Buenos Aires tem 20 milhões de um total de 40 milhões de argentinos. É meio país. Mas a Argentina não é só Buenos Aires...”

Emilio intercala os assuntos de forma quase imperceptível. Do carnaval como expressão social, ele traça nossas semelhanças – “a classe média e seu pensamento são exatamente iguais nos dois países” -, fala sobre resquícios africanos na música típica de Córdoba, o cuarteto, vai para nossas músicas, que têm sempre a palavra “alegria” como lugar-comum, e chega ao Cinema, comparando obras que falam de um tema muito parecido, mas o tratam de formas diferentes, refletindo as diferenças entre Brasil e Argentina: Cidade de Deus e El Polaquito.

Quarenta e cinco minutos depois, eu nem lembrava que tinha ido ali para definir o meu futuro na universidade.

CQC brasileiro















Domingo passado foi dia de juntarmos a brasileirada aqui da casa para assistir ao CQC brasileiro. O programa, comandado por Marcelo Tas, existe na Argentina há mais de 10 anos e faz um sucesso absurdo.

A versão brasileira estreou em março e já chegou causando polêmica. Em um sinal claro de abuso de poder e de censura em plena era democrática (inclusive com um ex-operário como presidente), proibiram os repórteres do programa de entrar no Congresso Nacional.
















Para tentar mudar isso, o CQC está em uma campanha buscando assinaturas para reverter essa decisão de nosso querido Legislativo. Basta entrar em www.cqcnocongresso.com.br e assinar.

Me parece que a decisão de barrar esses repórteres brasileiros na chamada Casa do Povo veio da natureza essencial do CQC. Tirando a parte de humor fácil e de encenações bobas, há alguns quadros que realmente fazem aquilo que outros veículos não fazem. Como na frase proclamada por Marcelo Tas todo final de programa: "Eles estão à solta, mas nós estamos atrás". E isso incomoda muita gente.


Brasileirada na Argentina

E no Brasil x Argentina de ontem, fomos ao Bar Brasileiro, o único de Córdoba, para torcer por nossa seleção. Se estívéssemos no Brasil, tenho certeza de que seria "só mais um jogo". Mas tudo muda de perspectiva quando você é brasileiro, sua seleção vai disputar uma partida importante e ainda mais contra quem?

Pena que o jogo foi feio, a seleção deu mais um fiasco e o empate teve sabor de derrota.

Mas pensando melhor, se perdendo ou ganhando a gente ia ou ser zoado ou ser odiado por aqui, acho que para nós - brasileiros morando na Argentina - o empate foi mesmo o melhor negócio.

Na foto 1, a brasileirada da casa (com exceção de Rodrigo): André, Eduardo, Rúbia, Ivia, eu, Taísa, Juli (epa, essa é argentina) e Fernando Fernet.

Foto 2: Ivia pinguça e a bebida dos dos deuses; Foto 3: Juli x Taísa "mengão êo".





Che completaria 80 anos no último sábado












A camiseta ficou famosa, a foto foi a mais reproduzida do mundo e os pensamentos de Che viraram citações nas agendas chiques de jovens da classe média. Exceção talvez de movimentos como o Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, que ainda usa as mensagens de Ernesto Guevara para buscar alternativas ao modelo hegemônico neoliberal. Mas mesmo ali, a bandeira está mais presente que o pensamento. E os olhos de Che, com o fundo de uma estrela branca em contraste com o vermelho, significam pouco ou nada. O que ele estava olhando naquele momento? O futuro da América Latina unida? Um grande bolo de chocolate? Ou quem sabe alguma mulher bunduda que passava ali?


O grande socialista e sonhador virou mercadoria. A estrela de cinco pontas, símbolo do Exército Vermelho Bolchevique, virou logotipo de marca de cerveja. E as palavras do peruano José Carlos Mariátegui, o chamado primeiro marxista da América, nunca foram mais atuais e verdadeiras, apesar de terem sido escritas há oitenta e três anos:


"A civilização burguesa sofre da falta de um mito, de uma fé, de uma esperança. O mito move o homem na Historia. Sem um mito, a existência humana não tem nenhum sentido histórico. Os povos capazes de uma vitória foram os povos capazes de mitos múltiplos."


Para ele, os mitos não seriam bem ilusões falsas, mas sim crenças mobilizadoras que condensam esperanças coletivas e desejos populares.


O mito de Che Guevara serviu para aquilo contra o que ele mais lutou: o modelo capitalista.

MUY INTERESANTE pero no tanto...

A versão argentina (também comercializada no Uruguai e no Paraguai) da SUPER INTERESSANTE (não sei qual veio primeiro, se a nossa ou a deles), é muito (muitíssimo) inferior à nossa.

Muy Interesante traz, nesse mês, uma matéria de capa sobre a mente humana com os seguintes dizeres: “Mente Criminal: podremos predecir el delicto? La ciencia investiga el cerebro para saber si el delincuente dice la verdad”.

Na primeira página, quem sabe a melhor da revista, uma charge de folha inteira de Quino, o criador da Mafalda, a menina que fala de política nos termos mais comuns e ingênuos (será?) do cotidiano.

A diagramação, aqui, é um pouco mais sóbria, digamos. Há espaços em branco sin dramas e não há a característica profusão de cores e imagens de infográfico da SUPERINTERESSANTE. Quem sabe um meio termo seria o ideal, afinal os infográficos são uma parte importante na transmissão da mensagem, principalmente quando eles estão na medida certa: nem de mais, nem de menos.

No olho da matéria de capa já perdemos a vontade de ler o texto: “com a ajuda de técnicas modernas biomédicas, os cientistas tentam associar condutas delitivas com áreas do cérebro. Mas ninguém tem ainda a ultima palavra sobre as raízes profundas da delinqüência. Para que eu precisaria ler o resto? O que o texto poderia me acrescentar?

Com um texto picotado em muitíssimos intertítulos (média de dois por página) e com mesmo estilo em todas as matérias (foram jornalistas ou computadores quem escreveram?), a matéria de capa traz algumas coisas legais, mais questionamentos, como o fato de, nos EUA, o país dos processos, muita gente estar sendo absolvida de crimes pelo estudo do cérebro. Algo como “meu cérebro é o criminoso; eu, não” - o que um professor de Direito e Psiquiatría da Pensilvania rechaça: “Algumas pessoas com transtornos cerebrais semelhantes podem não serem violentas. Os cérebros não cometem crimes, quem os comete são as pessoas”. Isso nos leva ao “entorno” de um indivíduo, ao meio em que vive, em que foi criado, elementos que, de certa forma, influem seu comportamento futuro.

E a matéria surpreende pela discussão que exibe: “nada determina o comportamento dos indivíduos como os processos que têm lugar no cérebro”, diz um professor de Psicologia de Harvard.

É, não estava tãããão mal. O fechamento é assim: “De fato, pode a neurociência contribuir a criar um mundo mais seguro? Ninguém pode hoje assegurar isso. Como não se pode dizer que seja um argumento irrevogável para não levar um criminoso à prisão”. Conclusão que a que já havíamos sido apresentados, mesmo antes de ler o texto.

Ah, há um box preguiçoso na última página. É um depoimento de um doutor em neurologia escrito por ele, com seus jargões médicos misteriosos. A função do jornalista seria entrevistar o médico e fazer a decodificação ou tradução para seus leitores, não? Ou se esqueceram de que não sou médico nem estudante de medicina?

Outro sinal de preguiça, tosquice e má vontade é o trecho do livro que o físico Stephen Hawking escreveu com sua filha Lucy. Publicaram uma parte do livro dele e acham isso o máximo. Deve ser para fazer publicidade, afinal a revista “sorteia dez livros entre as primeiras 100 cartas que chegarem à redação”. Mas mesmo para uma matéria publicitária seria interessante um texto jornalístico. A vida de Stephen Hawking, afinal, sempre vale boas notas.

E a matéria mais bem-humorada (e a melhor da edição): “Con la boca abierta”. Vamos falar de bocejo, por que bocejamos, para que serve o bocejo? Comigo foram três ou quatro bocejos entre as cinco páginas. Não porque estavam chatas de ler e sim porque o bocejo é uma das condutas mais contagiosas. É só ver alguém bocejando que você acaba também o imitando. E isso só entre humanos e certos primatas. Crianças antes dos 5 anos não se contagiam e autistas também não. Incapacidade de conectar-se com o próximo?

Interessante, ao menos, é a idéia de que o bocejo tenha uma função evolutiva fundamental. Como as pombas. Uma pomba vê um pedestre se aproximando e voa, sendo seguida imediatamente por suas companheiras, ainda que essas ignorem a causa do alarme. Então, o bocejo poderia ser uma ferramenta para propagar o estágio de vigilância em um grupo. Hum... E eu que pensava que era só para entrar oxigênio no cérebro (argumento que a Ciência já desmentiu com experiências usando gás carbônico).

Seguimos com matérias não tão interessantes, ou com pauta interessante, mas mal aproveitadas pelos repórteres e editores, como a “Visita à fábrica de gênios” no MIT (Insitituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA) e uma matéria histórica sobre Tutmosis III.

Se a nossa SUPERINTERESSANTE se destaca sobretudo pelos infográficos, a MUYINTERESANTE traz fotos muito bem feitas, como na série sobre as abelhas. Mas nada mais que isso.

Termino a revista com um jogo de sodoku, talvez mais interessante do que a revista do mês.

Velhice

Devo estar ficando velho... Depois da "quebraceira" de quinta-feira - em uma festa da Tropicália brasileira (ver gente do Consulado bêbada não tem preço...) e depois em um boliche con todo al costo - não me deu vontade de sair na sexta nem no sábado. O frio pode ter influído, preferi ficar em casa vendo alguns filmes. Devo estar ficando velho.

Sinais dos tempos...

O julgamento dos “soldados vitoriosos” argentinos

Antes de o julgamento começar, enquanto as 160 pessoas entram no tribunal e vão ocupando as cadeiras reservadas, um grito forte de mulher ecoa na sala: “Chegou a hora!”. Alguns minutos depois, às 10h34 de uma terça-feira fria na cidade Córdoba, Argentina, o juiz presidente inicia a sessão que vai julgar oito ex-militares.

Entre os réus, um senhor de 80 anos se destaca. Impassível e sem cruzar as pernas como fazem seus companheiros, seu blaser cinza repousa em seu colo enquanto seus olhos fixam a bancada dos juízes. Os jornalistas que o observam são tentados a descrever os olhos daquele senhor com o clichê “olhos de águia”, mas essa descrição não vai aparecer no jornal do outro dia, assim como também não vai aparecer o xingamento de um radialista ao observar Luciano Benjamín Menéndez: “Olha como está velho, o filho da puta!”

Fora do prédio do Tribunal Federal de Córdoba, a polícia fecha o quarteirão para evitar a proximidade de mil manifestantes, a maioria composta por estudantes e militantes de partidos de esquerda. Dentro do edifício é possível escutar as músicas de protesto:

“Olé, olé... Olé, olá. Vení, Menéndez, vení, mirá. Los subversivos cada día somos más!"

“Hoje meu sentimento é contraditório. Por um lado é uma satisfação ver os ditadores no banco dos réus. Mas a alegria seria completa com o julgamento de todos os que participaram desse massacre social, desse genocídio”, declara Eduardo Sales, do Partido Obrero, referindo-se aos cerca de 30 mil desaparecidos na última Ditadura Militar Argentina (1976-83).

No último banco à direita da primeira fila

De acordo com os partidos de esquerda e dos movimentos sociais presentes, o maior genocida é Luciano Benjamín Menéndez, como nos dizeres pichados na rua da casa do ex-mlitar. Ele está sendo julgado ao lado de sete ex-militares, “dignos subordinados”, nas palavras do próprio Menéndez, que atenderam a suas ordens de 1975 a 79 no Terceiro Corpo do Exército, organização responsável por dez das 23 províncias argentinas durante a última Ditadura Militar argentina (1976-83). Ele, porém, parece alheio às manifestações, ou já se acostumou a elas, que começaram a ser mais freqüentes depois de 1984, quando um fotógrafo astuto percebeu o momento de registrar uma imagem que permanece viva na mente de todos os presentes no julgamento.

Benjamín Menéndez estava saindo da gravação de um programa de TV quando foi insultado por um grupo de pessoas. A reação foi imediata. Sacou um punhal e avançou em direção a seus detratores. Os acompanhantes do ex-militar o detiveram, agarrando seu braço, e a foto saiu nos jornais do dia seguinte: a faca nas mãos, o tal “olhar de águia” e o braço impedido de agir.

Agora ele está sentado no último banco à direita da primeira fila. Os réus estão protegidos por uma peça de vidro blindada, que em nada impede o insulto da irmã de um desaparecido durante a Ditadura. “Covardes, assassinos, torturadores. Senhores juízes, por favor, façam justiça”, clamou enquanto o presidente do tribunal, o juiz Jaime Díaz Gavier a repreendia, expulsando-a da sala. “Eu não vou permitir manifestações de nenhuma natureza. Estamos em um julgamento”, respondeu o magistrado.

Organizações como H.I.J.O.S., Abuelas da Plaza de Maio ou Familiares de Desaparecidos e Detidos por Razões Políticas (FDDRP) lutam há muito tempo para levar os ex-ditadores ao banco dos réus. Emilia Dambre é uma senhora da mesma idade de Benjamín Menéndez. Teve dois filhos desaparecidos e, a partir daí, começou a militar no FDDRP. “Quando comecei a buscar meus filhos é que passei a ver o que eles defendiam e vi que tudo pelo que eles lutavam era para chegar a um mundo melhor”, conta Emilia que, na mesma semana do julgamento completaria 57 anos de casada, caso seu marido Santiago ainda fosse vivo.










Assim como Emilia, Mercedes Toloso de Bustos não vai esquecer nunca do dia em que teve seu filho seqüestrado. “Eu tenho memória, muita memória”, diz ela depois de passar pela barreira policial e ir em direção ao tribunal. “Meu filho tinha 21 anos quando pegaram ele e minha vida é dividida em antes e depois de seu desaparecimento. Se eu pudesse olhar nos olhos do assassino eu ia perguntar aonde ele colocou meu filho. Eu quero saber onde ele está, eu tenho o direito maternal de saber...”, emociona-se. Ela não consegue terminar de conversar com os jornalistas e entra chorando no saguão principal.

Ao ver a multidão de repórteres, microfones, gravadores, câmeras e luzes, muitas luzes em sua direção, Valéria Chávez parece confusa e atordoada. Sem saber muito bem para que lado olhar, ela responde a todas as perguntas calmamente, sem vergonha dos olhos marejados e da voz embargada, nem quando alguém pergunta o que ela diria a Menéndez. “Não sei se lhe diria algo”, respondeu. “Eu não quero me encontrar com ele. Nada me vai devolver o que eu perdi, mas acho que a justiça vai sanar um pouco minha dor e a dor de muitos que estão na mesma situação.”

O caso

Tudo aconteceu na manhã de seis de novembro de 1977. O casal Hilda Flora Palacios e Humberto Brandalisis sai em direção à casa de dois amigos. Vão acompanhados das duas filhas de Hilda, frutos de um casamento anterior: Valeria, de três anos, e Soledad, de um ano de idade. Chegando lá, Humberto se retira e diz que volta para o almoço, sem saber que só veria a mulher trinta e oito dias depois, quando ambos seriam assassinados.

Humberto não regressou até o anoitecer. Foi então que os amigos resolvem levar Hilda para a casa dela. Vão no mesmo carro o casal de amigos e seus três filhos, além de Hilda, Valeria e Soledad. Na residência, porém, policiais à paisana já os esperavam.

Os oficiais deixam as crianças na casa da sogra do casal e levam todos encapuzados ao centro clandestino de detenção e extermínio “La Perla”, uma dependência militar que funcionava no centro da cidade de Córdoba.

“Não tenho recordações do dia em que seqüestraram minha mãe, só do que me contaram depois”, lembra Valéria antes de se despedir dos repórteres e entrar na sala do julgamento, driblando as muitas câmeras e flashes fotográficos.

Humberto Brandalisis e Hilda Palacios foram fuzilados junto a Carlos Enrique Lajas e ao pintor Raúl Cardoso, todos militantes do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PTR). O plano, batizado de “Operativo Ventilador”, baseava-se no método de matar os opositores e depois colocar os cadáveres na rua, simulando um enfrentamento contra as forças militares. Então desapareciam com os corpos a fim de não deixar evidências que, no futuro, poderiam incriminar os próprios militares.

Os restos mortais de Hilda, no entanto, puderam ser recuperados. Em 2004, um exame de DNA determinou a correspondência entre o cadáver encontrado em um cemitério individual e amostras de sangue de Valeria. De acordo com resolução da Justiça Federal Argentina, Hilda Palacios faleceu “como conseqüência de choque hemorrágico traumático causado por ferida de bala”.

Na ocasião, Valeria declarou que aquele dia, de certa forma, foi bom. “Antes disso eu não tinha nem registro nem recordações. Agora pelo menos ela não é mais uma desaparecida.”

Valeria e Soledad, ao lado das associações H.I.J.O.S., Familiares Desaparecidos e Detidos por Razões Políticas, são quem processam oito ex-militares pelos crimes de seqüestro, aplicação de tortura e assassinato.

Subversão marxista

No segundo dia do julgamento, os outros sete acusados negam os crimes pelos quais estão sendo julgados e se reservam ao direito de permanecer calados. Mas Menéndez opta por falar. Pega o microfone, desdobra um papel, tira os óculos e começa a leitura, primeiro dizendo que o tribunal era incompetente para julgá-lo.

“A lei vigente quando a subversão marxista iniciou o assalto a nossa pátria afirma que eu teria que ser julgado por um tribunal militar”, diz, concentrando toda a atenção dos presentes na sala, sem referir-se que seu reclamo foi rechaçado por juízes de primeira instância e tribunais de alçada. Com sua voz levemente rouca, ele continua: “Sou o único responsável da atuação da minha tropa. Por isso, a meus dignos subordinados daquela época, não se pode acusá-los de nada e muito menos privá-los da liberdade”.

Luciano Benjamín Menéndez está convencido de que fazia parte de “forças legais responsáveis por enfrentar e vencer o terrorismo marxista”. No lado esquerdo do peito ele, junto com os outros sete acusados, usa um broche com as cores da bandeira argentina transpassada por uma fita negra representando luto. Um gesto provocador que evoca o ponto de vista dos réus, que não reconhecem a justiça civil e marcam o julgamento como indigno. Pensam que eles, os antigos militares, “soldados vitoriosos”, como disse Menéndez, não deveriam sentar-se no banco indigno dos réus, afinal de contas eles “venceram os terroristas subversivos que assaltaram o país porque não acreditavam nas instituições republicanas”.

O julgamento começou em 27 de maio, mas está longe de acabar. Sua longa duração é compatível com a revolta e clamor por justiça dos manifestantes, que lá fora ainda cantam: “Olé, olé... Olé, olá. Como a los nazi, les va a pasar. A donde vayan los iremos a buscar”.

Mayday

Infelizmente não deu certo mandar o vídeo da cobertura da 34a Feira Internacional do Livro de Buenos Aires. O vídeo está pronto já faz tempo, mas não consigo colocá-lo no youtube porque tem mais de 10 minutos e nem jogar aqui no blog, graças, acho, à conexão à internet baixa que temos aqui na casa.

Até poderia mostrar a versão de 2mb (!), mas a qualidade é pessimamente péssima.

Quem sabe quando eu voltar para o Brasil e achar uma conexão à internet mais rápida dê para pôr o vídeo aqui com um qualidade não tão ruim. Quem sabe...