O julgamento dos “soldados vitoriosos” argentinos

Antes de o julgamento começar, enquanto as 160 pessoas entram no tribunal e vão ocupando as cadeiras reservadas, um grito forte de mulher ecoa na sala: “Chegou a hora!”. Alguns minutos depois, às 10h34 de uma terça-feira fria na cidade Córdoba, Argentina, o juiz presidente inicia a sessão que vai julgar oito ex-militares.

Entre os réus, um senhor de 80 anos se destaca. Impassível e sem cruzar as pernas como fazem seus companheiros, seu blaser cinza repousa em seu colo enquanto seus olhos fixam a bancada dos juízes. Os jornalistas que o observam são tentados a descrever os olhos daquele senhor com o clichê “olhos de águia”, mas essa descrição não vai aparecer no jornal do outro dia, assim como também não vai aparecer o xingamento de um radialista ao observar Luciano Benjamín Menéndez: “Olha como está velho, o filho da puta!”

Fora do prédio do Tribunal Federal de Córdoba, a polícia fecha o quarteirão para evitar a proximidade de mil manifestantes, a maioria composta por estudantes e militantes de partidos de esquerda. Dentro do edifício é possível escutar as músicas de protesto:

“Olé, olé... Olé, olá. Vení, Menéndez, vení, mirá. Los subversivos cada día somos más!"

“Hoje meu sentimento é contraditório. Por um lado é uma satisfação ver os ditadores no banco dos réus. Mas a alegria seria completa com o julgamento de todos os que participaram desse massacre social, desse genocídio”, declara Eduardo Sales, do Partido Obrero, referindo-se aos cerca de 30 mil desaparecidos na última Ditadura Militar Argentina (1976-83).

No último banco à direita da primeira fila

De acordo com os partidos de esquerda e dos movimentos sociais presentes, o maior genocida é Luciano Benjamín Menéndez, como nos dizeres pichados na rua da casa do ex-mlitar. Ele está sendo julgado ao lado de sete ex-militares, “dignos subordinados”, nas palavras do próprio Menéndez, que atenderam a suas ordens de 1975 a 79 no Terceiro Corpo do Exército, organização responsável por dez das 23 províncias argentinas durante a última Ditadura Militar argentina (1976-83). Ele, porém, parece alheio às manifestações, ou já se acostumou a elas, que começaram a ser mais freqüentes depois de 1984, quando um fotógrafo astuto percebeu o momento de registrar uma imagem que permanece viva na mente de todos os presentes no julgamento.

Benjamín Menéndez estava saindo da gravação de um programa de TV quando foi insultado por um grupo de pessoas. A reação foi imediata. Sacou um punhal e avançou em direção a seus detratores. Os acompanhantes do ex-militar o detiveram, agarrando seu braço, e a foto saiu nos jornais do dia seguinte: a faca nas mãos, o tal “olhar de águia” e o braço impedido de agir.

Agora ele está sentado no último banco à direita da primeira fila. Os réus estão protegidos por uma peça de vidro blindada, que em nada impede o insulto da irmã de um desaparecido durante a Ditadura. “Covardes, assassinos, torturadores. Senhores juízes, por favor, façam justiça”, clamou enquanto o presidente do tribunal, o juiz Jaime Díaz Gavier a repreendia, expulsando-a da sala. “Eu não vou permitir manifestações de nenhuma natureza. Estamos em um julgamento”, respondeu o magistrado.

Organizações como H.I.J.O.S., Abuelas da Plaza de Maio ou Familiares de Desaparecidos e Detidos por Razões Políticas (FDDRP) lutam há muito tempo para levar os ex-ditadores ao banco dos réus. Emilia Dambre é uma senhora da mesma idade de Benjamín Menéndez. Teve dois filhos desaparecidos e, a partir daí, começou a militar no FDDRP. “Quando comecei a buscar meus filhos é que passei a ver o que eles defendiam e vi que tudo pelo que eles lutavam era para chegar a um mundo melhor”, conta Emilia que, na mesma semana do julgamento completaria 57 anos de casada, caso seu marido Santiago ainda fosse vivo.










Assim como Emilia, Mercedes Toloso de Bustos não vai esquecer nunca do dia em que teve seu filho seqüestrado. “Eu tenho memória, muita memória”, diz ela depois de passar pela barreira policial e ir em direção ao tribunal. “Meu filho tinha 21 anos quando pegaram ele e minha vida é dividida em antes e depois de seu desaparecimento. Se eu pudesse olhar nos olhos do assassino eu ia perguntar aonde ele colocou meu filho. Eu quero saber onde ele está, eu tenho o direito maternal de saber...”, emociona-se. Ela não consegue terminar de conversar com os jornalistas e entra chorando no saguão principal.

Ao ver a multidão de repórteres, microfones, gravadores, câmeras e luzes, muitas luzes em sua direção, Valéria Chávez parece confusa e atordoada. Sem saber muito bem para que lado olhar, ela responde a todas as perguntas calmamente, sem vergonha dos olhos marejados e da voz embargada, nem quando alguém pergunta o que ela diria a Menéndez. “Não sei se lhe diria algo”, respondeu. “Eu não quero me encontrar com ele. Nada me vai devolver o que eu perdi, mas acho que a justiça vai sanar um pouco minha dor e a dor de muitos que estão na mesma situação.”

O caso

Tudo aconteceu na manhã de seis de novembro de 1977. O casal Hilda Flora Palacios e Humberto Brandalisis sai em direção à casa de dois amigos. Vão acompanhados das duas filhas de Hilda, frutos de um casamento anterior: Valeria, de três anos, e Soledad, de um ano de idade. Chegando lá, Humberto se retira e diz que volta para o almoço, sem saber que só veria a mulher trinta e oito dias depois, quando ambos seriam assassinados.

Humberto não regressou até o anoitecer. Foi então que os amigos resolvem levar Hilda para a casa dela. Vão no mesmo carro o casal de amigos e seus três filhos, além de Hilda, Valeria e Soledad. Na residência, porém, policiais à paisana já os esperavam.

Os oficiais deixam as crianças na casa da sogra do casal e levam todos encapuzados ao centro clandestino de detenção e extermínio “La Perla”, uma dependência militar que funcionava no centro da cidade de Córdoba.

“Não tenho recordações do dia em que seqüestraram minha mãe, só do que me contaram depois”, lembra Valéria antes de se despedir dos repórteres e entrar na sala do julgamento, driblando as muitas câmeras e flashes fotográficos.

Humberto Brandalisis e Hilda Palacios foram fuzilados junto a Carlos Enrique Lajas e ao pintor Raúl Cardoso, todos militantes do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PTR). O plano, batizado de “Operativo Ventilador”, baseava-se no método de matar os opositores e depois colocar os cadáveres na rua, simulando um enfrentamento contra as forças militares. Então desapareciam com os corpos a fim de não deixar evidências que, no futuro, poderiam incriminar os próprios militares.

Os restos mortais de Hilda, no entanto, puderam ser recuperados. Em 2004, um exame de DNA determinou a correspondência entre o cadáver encontrado em um cemitério individual e amostras de sangue de Valeria. De acordo com resolução da Justiça Federal Argentina, Hilda Palacios faleceu “como conseqüência de choque hemorrágico traumático causado por ferida de bala”.

Na ocasião, Valeria declarou que aquele dia, de certa forma, foi bom. “Antes disso eu não tinha nem registro nem recordações. Agora pelo menos ela não é mais uma desaparecida.”

Valeria e Soledad, ao lado das associações H.I.J.O.S., Familiares Desaparecidos e Detidos por Razões Políticas, são quem processam oito ex-militares pelos crimes de seqüestro, aplicação de tortura e assassinato.

Subversão marxista

No segundo dia do julgamento, os outros sete acusados negam os crimes pelos quais estão sendo julgados e se reservam ao direito de permanecer calados. Mas Menéndez opta por falar. Pega o microfone, desdobra um papel, tira os óculos e começa a leitura, primeiro dizendo que o tribunal era incompetente para julgá-lo.

“A lei vigente quando a subversão marxista iniciou o assalto a nossa pátria afirma que eu teria que ser julgado por um tribunal militar”, diz, concentrando toda a atenção dos presentes na sala, sem referir-se que seu reclamo foi rechaçado por juízes de primeira instância e tribunais de alçada. Com sua voz levemente rouca, ele continua: “Sou o único responsável da atuação da minha tropa. Por isso, a meus dignos subordinados daquela época, não se pode acusá-los de nada e muito menos privá-los da liberdade”.

Luciano Benjamín Menéndez está convencido de que fazia parte de “forças legais responsáveis por enfrentar e vencer o terrorismo marxista”. No lado esquerdo do peito ele, junto com os outros sete acusados, usa um broche com as cores da bandeira argentina transpassada por uma fita negra representando luto. Um gesto provocador que evoca o ponto de vista dos réus, que não reconhecem a justiça civil e marcam o julgamento como indigno. Pensam que eles, os antigos militares, “soldados vitoriosos”, como disse Menéndez, não deveriam sentar-se no banco indigno dos réus, afinal de contas eles “venceram os terroristas subversivos que assaltaram o país porque não acreditavam nas instituições republicanas”.

O julgamento começou em 27 de maio, mas está longe de acabar. Sua longa duração é compatível com a revolta e clamor por justiça dos manifestantes, que lá fora ainda cantam: “Olé, olé... Olé, olá. Como a los nazi, les va a pasar. A donde vayan los iremos a buscar”.

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