A temperatura que os livros queimam




Um homem comum tomando uma xícara de café em sua própria casa e fumando um cigarro recebe uma estranha ligação.
- Alô!
- Sai de casa. Apresse-se!
- O quê? Quem é?
- Vai logo. Se mexe!
A câmera aproxima dando closes no rosto do rapaz em quatro cortes. A pessoa desliga. Ele ouve o barulho de sirene. Olha na janela. Pega o casaco e sai comendo uma maçã. Instantes depois chega o corpo de bombeiros. Seus homens vestindo preto invadem a residência e procuram insistentemente por... livros. Juntam os exemplares que conseguem encontrar e queimam tudo.

Assim é o começo de Fahrenheit 451, filme dirigido por François Truffaut, cujo roteiro é baseado em livro de Ray Bradbury. A história se passa em algum lugar do futuro, quando bombeiros são os tentáculos de um sistema que abomina toda forma escrita (os jornais que os personagens lêem são compostos por figuras) e queimam livros. Um dos bombeiros, Guy Montag (Oskar Werner), passa a questionar suas próprias ações. Tentarei, por meio deste artigo, comentar algumas passagens da trama, o que pode estragar o filme a quem ainda não o tenha assistido.

Aviso dado, vamos ao óbvio: François Truffaut é gênio. Ele é um dos expoentes da Novelle Vague francesa, ao lado de Jean-Luc Godard, e seu primeiro filme, Os Incompreendidos (1969), lhe rendeu o prêmio de Direção em Cannes.Seus planos, suas boas sacadas, a composição das cenas e suas transições: partes que podem ser consideradas como aulas de cinema. O uso consciente e moderado da câmera lenta, quando tem a intenção de justificar alguma passagem ou dar ritmo é um dos melhores achados de Fahrenheit 451. A propósito, a abertura do filme é falada – não temos os créditos dedicados aos atores, roteiristas, diretor, etc. como modo a encenar o que veremos a seguir: uma sociedade que abomina palavras impressas em um filme que se apresenta sem palavras escritas.

Em Fahrenheit 451, o sistema sob o qual as pessoas vivem entende que, para sermos felizes devemos ser iguais, e para sermos iguais ninguém deve ler, uma vez que a leitura diferencia as pessoas. Quando Montag encontra uma jovem professora no ônibus, ela lhe pergunta se ele já lera algum dos livros que queima. A curiosidade toma conta do bombeiro, que passa a repensar seus valores: afinal, por que tudo isso?

Quando ele começa a ler, desenvolve um senso crítico, passa a fazer perguntas e a sair do mundinho fechado em que seus conhecidos vivem – um mundo dominado pela televisão. Aqui cabe um questionamento: não seria a TV objeto muito mais disseminador de idéias – e perigoso sob a ótica do filme – que livros? Mas a TV que assistem é dominada por um canal alienador, que conta com novelas interativas e um telejornalismo do espetáculo.

Assim, Montag, que julgava ser feliz, passa a mão ser mais. Ele acha um mundo novo a descobrir e sai da caverna em que estava preso e na qual outros como ele ainda estão. Mais uma vez o mito da caverna de Platão. Montag se destaca e não vê mais o mundo com os mesmos olhos. Nessa transformação do personagem tem destaque a cena em que uma mulher idosa, cuja biblioteca ia ser queimada pelos bombeiros, resolve atear fogo em si mesma. Ela morre junto aos livros que tanto ama.

Depois de ser perseguido por essa sociedade – e aqui o cenário composto pelo diretor é coerente com a proposta do filme: a cidade não tem arroubos futuristas, mas contém uma atmosfera sombria, asfixiante e opressora – Montag foge para um retiro no qual estão várias pessoas que usavam livros e que também foram marginalizados pela sociedade. A cena de sua perseguição é um dos momentos mais fracos do longa. Falta emoção e credibilidade.

Nesse lugar, ele vai ter contato com os homens-livros: indivíduos que decoraram leituras que fizeram a fim de nunca deixar a cultura morrer. O papel pode ser queimado, mas o que está na mente nunca pode ser usurpado. Ali ninguém tem nome. Chamam uns aos outros pela obra e pelo autor: Macbeth, de Shakespeare; Pride and Prejudice, de Jane Asten. Essas pessoas-livros deixam de ser pessoas para virarem livros.

É um lugar que não parece bom e no qual se está perdido como em uma grande biblioteca. Aí está o final anticlímax, com certa dose de pessimismo, mas que faz pensar: as pessoas são felizes na ignorância, como a mulher de Montag; mas ele começa a ler, a pensar e a se desvencilhar daquele mundo e não consegue mais ser feliz e nem voltar ao estado inicial de ignorância. Algumas perguntas: se pudesse voltar à ignorância e, assim, à ilusão de ser feliz, nós voltaríamos? Você voltaria? E ele, que vê o mundo com novo olhar, qual o próximo nível de felicidade? Como alcançá-la?

A explicação do filme é que não há mais felicidade, mas apenas um espaço onde nos podemos esconder, onde se deixa de ser humano para ser um livro ambulante – e nem sabemos como essa comunidade se sustenta, pois passam a vida a recitar as linhas dos livros que leram, sem nada mais fazer. É o movimento cíclico de alienação, mas dessa vez com o livro como objeto. As pessoas vivem na inércia, sem buscar a felicidade, sem crescer, sem voltar à cidade para revolucionar. Elas mesmas se tornam escravas da admiração submissa às grandes obras e o livro deixa de cumprir a função de desenvolvimento. Eles se livraram daquela sociedade para se escravizarem em outra.

O filme deixa um gosto amargo, mas, assim como um bom livro, faz refletir.

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